De volta à Torre Celeste

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Edwain teve dificuldade de dormir. Rolava na cama irritado. Não conseguia parar de pensar em sua mãe dividindo a cama com Jon Tarpin. Era o final da madrugada e logo viria o alvorecer. Levantou-se, lavou o rosto com água fria usando a jarra de metal e a bacia de cerâmica esmaltada. Ruído de insetos, sapos e outras criaturas noturnas davam uma tintura distante ao silêncio que reinava no palácio. Não haveriam aulas na academia naquele dia. Haviam decretado um feriado para dar continuidades às celebrações do casamento real. Vestiu-se e saiu de seu quarto. Cruzou o extenso corredor até a saída da Ala Real.

— Bo-bom dia, Alteza! — cumprimentou um dos sentinelas, surpreso.

Edwain os cumprimentou, chamando pelo nome.

Edwain caminhou para a saída, mas teve o avanço bloqueado — Podemos ajudar, Alteza?

— Sim, quero sair... — fez um gesto para abrirem o caminho.

— Desculpe, mas não é seguro...

O casamento e a chegada dos Tarpin e toda aquela gente de Jenesh tinham-no aborrecido tanto, que havia se esquecido da questão dos assassinatos e do demônio à solta no palácio.

— Sim, claro. Um de vocês pode vir comigo? Lá embaixo pedimos para vir outro para substituí-lo no posto.

Um olhou para o outro, sem saber bem o que fazer.

— Vamos, você parece cansado, acho que não faz mal deixar seu posto um pouco mais cedo hoje, não é? — sugeriu o príncipe.

O cavaleiro deu com os ombros e o seguiu.

— Para onde vamos, Alteza? A cozinha? — pensava que comer alguma coisa não seria ruim.

— Talvez depois, agora para a Torre Celeste.

O cavaleiro franziu o cenho, cheio de preguiça. Era uma subida e tanto, afinal. Subiram e subiram. Edwain atualmente tinham um preparo físico de se invejar devido ao duro treinamento na Academia. Naqueles meses, ele havia crescido um pouco e estava mais encorpado, mas que convivesse com ele no dia-a-dia não notaria.

Estava de volta à mesma janela de onde, meses atrás, observou o ataque da horda de demônios. O local por onde aquele demônio esquisito havia penetrado.

Veio um vento frio de fora. As luzes que prenunciavam o alvorecer já tingiam a cidade com tonalidades púrpuras e de azul profundo. Umas poucas janelas, por toda a cidade se destacavam com luz amarela indicando que mesmo no feriado, muita gente não deixava de acordar bem cedo.

— É uma bela vista, não?

— Sim, meu príncipe, bela de fato.

Edwain voltou o olhar para a Praça da Meia-Lua. Havia gente trabalhando ali. O comércio, naquele dia, daria lugar às barraquinhas do festival. O povo não via um feriado e nem um festival assim, há muitos anos. Mas quando Kamanesh era um ducado do reino de Lacoresh, festejava-se ali, naquele mesmo local, ao menos duas vezes por ano. Aqueles eram tempos difíceis e o povo já vinha se esquecendo o que era festejar. Edwain torceu os lábios com amargura. Não tinha motivo algum para festejar.

Ele ficou ali, por quase uma hora observando o dia nascer e trocando algumas impressões com o cavaleiro da guarda. Também perguntando um pouco sobre sua vida e famíla. Era sempre bom conversar com seus homens, dizia seu avô. Com o sol presente, soaram os sinos dos templos. Os quatro portões de Kamanesh se abriram. As ruas estavam começando a ficar cheias de gente, cavalos e carroças. Havia uma agitação incomum nas ruas, e Edwain pensou ser algo relacionado ao festival. Mais tarde ele, o casal recém-casado e outros nobres fariam uma aparição para serem vistos pelo povo, num alto palanque montado na Praça da Meia-Lua. Pensar naquilo o deixava enjoado. Os sinos dos templos cessaram, mas um sino, mais baixo, no palácio tocava de modo insistente.

— Aconteceu alguma coisa! — disse o Cavaleiro com a expressão preocupada. Eles iam mandar alguém para o seu posto, mas quando não encontraram ninguém no caminho da Celeste, o príncipe acabara o convencendo a deixar para lá.

Edwain sentiu um nó na garganta pensando na possibilidade de que algo pudesse ter acontecido com sua mãe. Desceram a longa escada espiralada correndo e ainda no caminho para a Ala Real encontraram um grupo de guardas.

— É o príncipe!

— Ele está bem?

— Estou. O que houve? — Edwain quis saber.

— Mortes, meu príncipe. O cavaleiros Norrel e Zéfiro.

O cavaleiro empalideceu. Norrel era justamente quem estava com ele de guarda na Ala Real. Ele estaria vivo se não tivesse abandonado seu posto? Ou ele próprio estaria morto?

Edwain empalideceu duplamente. Havia retirado um homem de seu posto. Isso poderia ter consequências graves. Ao mesmo tempo, Zéfiro, o irmão de seu amigo, Mark... Apenas Zéfiro e Galdrik conheciam o segredo de sua identidade como Eduard Redwall.

— E a Rainha? — indagou o príncipe. Tinha olheiras nos olhos.

— Está bem, Alteza, mas muito preocupada com seu paradeiro.

— Eu estava...

Outro guarda disse — Infelizmente, não são as únicas notícias ruins que temos.

— Alguém mais foi morto ou ferido?

— Chegou um mensageiro vindo do sul, há pouco, Alteza. Wuri foi atacada!

— Demônios? Mortos-vivos? — arriscou Edwain.

— Não. O exército de Whiteleaf.

— Sabe os números?

— Não, Alteza, mas sei que mandaram cancelar o festival.

Seguiram de volta à Ala Real. Quem veio recebê-los foi o Arquiduque de Jenesh.

— Príncipe Edwain. Por que não estava em seu quarto?

— Eu saí, senhor.

— É culpa minha. — disse o cavaleiro.

— O que?

Edwain balançava a cabeça. O que aquele idiota estava dizendo? Estavam sendo protegido. Mas o que ele fez para merecer? Saber o nome dele? Tê-lo tratado bem? Conversar um pouco? Perguntar sobre a família?

— Eu não devia ter permitido que o príncipe saísse, como fui instruído. Estava um pouco entediado e achei que acompanhar o príncipe...

— Não diga mais nada. Apresente-se na guarnição e peça uma cela. Depois veremos uma punição a altura de seu crime. Vocês! — bradou para um par de guardas. — Acompanhem esse idiota até a guarnição.

Edwain queria falar alguma coisa para defendê-lo, mas era tarde demais.

— Entre, Edwain e vá ter com a Rainha! — ordenou de modo ríspido.

Edwain baixou os olhos sentindo o rosto queimar num misto de raiva e vergonha. Notou algo nas botas marrons escuras de Lorde Tarpin. O que era aquilo? Água? Sangue? Antes que pudesse dar mais atenção àquilo o Arquiduque saiu dali gritando e dando ordens a cavaleiros e membros da guarda.

Edwain entrou no quarto da mãe cabisbaixo. Era certo que escutaria um longo sermão. Ela o abraçou, com lágrimas nos olhos. Foram alguns momentos de silêncio, paz e acalento. Mas ela o afastou de si com uma cara nada boa.

— Edwain, meu filho! — apenas pelo tom de voz daquela primeira frase ele soube que estava certo sobre a parte do longo sermão.  

Herdeiros de KamaneshOnde histórias criam vida. Descubra agora