Deixando Lacoresh

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Hégio estava convencido de que Lacoresh cairia, não fosse naquele dia, seria em breve. A cidade era grande demais, as tensões entre grupos políticos e o clero eram enormes e já se via problemas de abastecimento. Muitas bocas para alimentar, pouca terra produtiva. E agora, o pior de tudo: ataques frequentes de hordas demoníacas. Ataques já ocorriam pelo terceiro dia consecutivo. Estava decidido a deixar a cidade antes que fosse tarde. Seu cavalo galopava veloz pelas ruas estreitas da região portuária. Ele olhava para trás, preocupado. A leste vinha mais uma revoada de demônios. Apeou do cavalo amarrando-o no beco, ao lado da estalagem onde estavam.

Entrou dizendo ao dono — Outro ataque. É melhor fechar tudo.

Àquela hora, a estalagem estava vazia. Passou direto subindo as escadas de três em três degraus. Bateu na porta e disse. — Luma! Abra, sou eu!

Pouco depois, a trava foi removida. Uma menina magricela de cabelos curtos e negros e, que teria uns onze ou doze anos, abraçou-o em seguida.

— Papai! Estava preocupada.

Ele se abaixou e disse — Escute filha, pegue suas coisas, um bom casaco e encha uma mochila com biscoitos, pães e queijo para viagem.

— Onde vamos?

— Temos que sair da cidade. Não é mais seguro aqui.

— Quando vamos?

— Agora mesmo. Vou acertar as contas e partiremos.

Ela entrou no quarto para fazer os preparativos e ele desceu as escadas. Tirou umas moedas de um dos bolsos de seu casacão e entregou ao dono da estalagem.

— Obrigado por tudo, amigo. Pense no que lhe disse. Parece que uma caravana vai partir amanhã, rumo a Kamanesh.

O dono da estalagem era um senhor grisalho, mas ainda vigoroso. Era um pouco calvo e usava um avental sujo sobre a roupa simples de tecido bege.

— Hégio, esse pessoal está louco. Kamanesh e Whiteleaf estão em guerra. Ir para o meio disso é loucura.

— Talvez seja, mas talvez seja melhor que permanecer aqui. Em pouco tempo essa cidade será engolida pelo caos.

— Acho que está sendo pessimista.

— Talvez eu esteja... Mas meu instinto me diz que é hora de cair fora. Aprendi a confiar nele.

— Certo, para onde vão, Kamanesh?

— Primeiro vou até Tebans. De lá eu resolvo.

A filha de Hégio desceu, toda equipada. Ele sorriu. Tinha ficado pronta antes do que esperava. Vestida assim, poderia passar fácil como menino.

— Bem, boa sorte para você. — disse Hégio cumprimentando-o com um sorriso.

— Que Leivisa lhe ilumine!

— Adeus, seu Nôgo. — ela acenou para o dono.

— Tchau, Luminha, e cuida desse seu pai pirado.

— Pode deixar, seu Nôgo.

Nôgo abriu a porta da estalagem e Hégio deu uma olhadela na rua antes de sair. Foi até o beco, colocou a filha sobre o cavalo e depois montou. Ouvia-se, ao longe, sons de batalha. A luta parecia distante. Isso era bom. Seguiram dali, morro acima para a parte alta da cidade. Dava para ver uns focos de incêndio no horizonte. "Essa cidade é enorme" ele pensava. Sua filha abraçava-o pelas costas e mantinha silêncio. Depois desceram o morro, passando pelo bairro dos artesãos, um lugar que fedia um pouco mais que o normal. Dali podiam ver o imponente portão norte, que como todos os demais, estava fechado.

Hégio retirou a carta carimbada pelo príncipe Kain e mostrou à guarda. Os homens então, abriram o portão. Estivera na noite anterior com Kain. Olhar para o selo o fez se lembrar da conversa que tiveram.

— E então, Sr. Greyhill, novidades para mim? — indagou o príncipe. Vestia negro como de praxe, mas seus olhos azuis claríssimos demonstravam cansaço em especial.

— A Capitã deve estar de volta a Kamanesh.

— Bom, e quanto a Lorual?

— Quase o derrotamos. Um rapaz sinistro surgiu e parecia querer confusão com o mago.

— É? — Kain estava curioso. — Deixe-me ver.

Hégio relaxou e Kain vasculhou sua mente em busca de imagens. Sua expressão mudou e ficou em silêncio por algum tempo.

— Está tudo bem, majestade?

— Sim, claro... Eu só... Não foi nada. Então, quer deixar Lacoresh, não é mesmo?

— Sim, se me permitir.

— Claro, o Sr. tem sempre prestado bons serviços ao reino. Vou lhe escrever uma permissão, mas devia confiar mais em mim. Não vou deixar Lacoresh cair assim tão facilmente.

— Estou certo que não, mas sabe como é...

— Sei sim, é o seu instinto, não é? Aquele comichão...

Hégio coçou a cabeça. E sorriu amarelo. — Pretende agir contra Whiteleaf?

— Ainda não. Um pouco de sufoco poderá fazer bem aos kamanenses. Se não se juntarem a nós logo...

— Desculpe dizer isto, alteza, mas é mesmo hora para prosseguir com jogos políticos? Uma aliança imediata entre Kamanesh e Lacoresh...

— Sei onde quer chegar, Greyhill, mas não.

— Sim, é claro que o senhor sabe o que está fazendo.

— Se for a Kamanesh, reúna-se com os outros. Sugiro que algo seja feito a respeito de Lorde Tarpin. Estou certo de que ele não é uma boa solução para o reino... Ele apenas representa apenas mais problemas.

— Como desejar, meu senhor. — Hégio curvou-se e teve a cabeça tocada pela mão esquerda de Kain. Ele vestia o bracelete do Dragão Negro. — Eu lhe concedo bênçãos renovadas.

— Agradeço por isso, senhor.

Kain foi até sua escrivaninha e escreveu uma nota curta num papel rígido e grosso. Depois carimbou-o com cera derretida púrpura. Nela, o dragão de duas cabeças, um dos símbolos de Lacoresh.

Hégio guardou a carta de Kain e, assim que o portão se abriu, disse — Vamos filha, temos que cavalgar ligeiro para chegar em Tebans antes que anoiteça.

— Foi lá que você conheceu a mamãe, não é mesmo?

Hégio sentiu uma pontada no coração. Detestava pensar na falecida esposa. — Foi sim, filha.

— Se tivermos sorte, poderemos ficar na casa de sua tia.

— Melhor não, papai. Que tal uma estalagem?

— Tem razão. Quanto menos confusão, melhor.

Terminaram de passar pelo portão, mas aquilo não significava o fim da cidade. Ainda levaria algum tempo para realmente chegar num lugar ermo. "Lacoresh é mesmo grande demais... Espero que o príncipe saiba mesmo o que está fazendo."

— Vamos! Rá! — bateu as rédeas para fazer o cavalo galopar.  

Herdeiros de KamaneshOnde histórias criam vida. Descubra agora