Infiltrado

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Tassip já escalava a torre fora da vista do mago. Espero que eles consigam ao menos escapar. Acho que no momento, sou a melhor chance de libertarmos a Capitã. Infiltração e escaladas eram especialidades de Tassip, e além de fazer isso bem, sem uso de magia, aprendeu alguns truques úteis que facilitavam sua vida. Um deles, era reduzir seu peso temporariamente. A parede da torre estava velha e cheia de falhas, rachaduras e até pedras faltando. Já havia escalado sob condições mais difíceis, concentrava-se no que estava fazendo, tentando abstrair os sons da batalha que ocorria lá embaixo. Consegui. Passou por cima do parapeito e encontrou um cômodo sujo e mal iluminado. O lugar tinha um cheiro esquisito e, felizmente, estava vazio. Desceu longos lances de escada e viu-se num salão redondo iluminado por duas tochas. Havia quatro passagens. Escutou vozes. Muito quieto, se esgueirou na direção delas, ficando com as costas contra a parede ao lado de uma dos portais.

— Não importa — a voz era rouca e velha — o mestre quer que ela esteja preparada para uma nova incorporação, ainda hoje.

— Mestre uma ova! Aquele maldito, eu digo que...

— Não me envolva nisto, Alavus, não quero nem ouvir. Ele pode ser o que for, mas já provou mais de uma vez astúcia e força muito além das nossas. Engula seu maldito orgulho e obedeça. Vá até o depósito e traga mais do fluido. Me encontre no laboratório.

Tassip escutou os passos com atenção. Um se afastava, o outro, vinha em sua direção. Tirou a faca da bainha e ficou à postos. Recordava-se das lições do Mestre Bjürk. Esperava não decepcioná-lo. Quando viu um velho vestido num manto negro passar por ele, levou uma mão sobre a boca e cravou a faca no ventre, por baixo das costelas. O velho era fraco e ainda se debateu e emitiu uns sons antes de amolecer e morrer. Tassip o arrastou para o corredor de onde viera e que dava acesso às escadas. Deixou-o ali e seguiu apressado. Ainda conseguiu escutar os passos do outro ao longe. Com passos leves e silenciosos avançou e, de uma esquina, viu o outro, também um velho, subir alguns degraus até uma porta de madeira que ficava num ponto elevado. Tassip foi até o local e encostou o ouvido para escutar. Ouviu alguns ruídos. O necromante estava lá dentro fazendo alguma coisa. Um cheiro forte emanava daquele local. Desembainhou outra faca e com uma em cada mão, resolveu arriscar.

Era um amplo laboratório sujo e cheio de coisas em duas largas bancadas. Tomou a imagem do lugar na mente. Estava com sorte. O necromante estava de costas.

— Você foi rápido, Alav... — o velho arregalou os olhos. Tassip arremessou uma das facas contra ele que se cravou abaixo da clavícula. O necromante deu um berro e tombou de lado derrubando um monte de frascos e vidraria. Tassip saltou sobre uma das bancadas e desceu para cravar a outra faca no velho. Ele aparou o golpe com o braço, recebendo um longo talho, mas ainda não estava liquidado. Sua boca torcida sussurrava um feitiço. Seus olhos de aparência sinistra o encaravam tremendo num misto de ódio e medo. Tassip ergueu a faca para um novo golpe, mas, antes de abaixá-la, sentiu um nó na garganta, enjoo e tonteira. Vomitou o que estava em seu estômago em cima do velho. Deixou cair a faca no chão e cambaleou para trás até atingir a outra bancada com as costas. O necromante segurou a faca cravada no peito e avançou entoando um novo feitiço, desta vez, com um pouco mais de vigor.

Tassip via tudo girando e vomitou mais. O velho arrancou a faca e o tocou com o outro braço, coberto de sangue. Tassip sentiu uma forte dor se alastrar pelo seu corpo, vários cortes finos se espalharam pelo seu braço até a mão. Na medida em que se abriam, os ferimentos do necromante se curavam.

— Vai se arrepender, maldito! — vociferou o necromante preparando-se para golpeá-lo com sua própria faca.

Agora é viver ou morrer. Tassip era um bom espião, mas não só isso. Não era um mago poderoso, nem um guerreiro completo, ou discípulo mentalista, mas era um pouco daquilo tudo. Concentrou seu Jii para afastar o enjoo e foi apenas um pouco bem sucedido nisto. Mas foi o suficiente. Recordou-se de suas lições de esgrima com o mestre Farkas e num movimento rápido, sacou e golpeou com sua espada. O talho no meio da barriga do velho trouxe dor e o fez largar a faca dando um passo para trás. O próximo golpe de Tassip foi uma estocada precisa contra o coração. O rosto do necromante se contraiu e ele tombou morto no instante seguinte.

O enjoo voltou com tudo e Tassip ajoelhou-se no chão e colocou para fora tudo que restava em seu estômago até que não saísse nada além de pura bile. Depois disso, veio o alívio. Foi por pouco. Aquilo fazia pensar que devia ter escutado sua mãe e ter ficado em Lirr para seguir com os negócios da família. Mas já não havia como voltar atrás.

A Capitã estava no mesmo cômodo, sedada. Mas a luta entre Kerdon Tassip e o velho necromante a despertou. Ela olhou o rapaz se levantando, um braço todo ensanguentado e pingando sangue. O rosto lívido, parecia um zumbi recém criado. Ele escutou a voz dela em sua mente.

"Rápido, me tire daqui!"

Tassip arrastou os pés e respondeu.

— Já vou... Eu só... — sentia-se exausto e sem fôlego. Cambaleou na direção da Capitã. Ela estava amarrada numa cama inclinada e tinha sobre o corpo um pano escuro, sujo e embolado. Tassip focalizou o olhar no rosto dela. Era pálido, parecia faminta e fraca, havia marcar roxas em torno de seu pescoço, mas ainda assim, conservava muito de sua beleza original.

— Sempre ouvi dizer... que você escondia um rosto horrível debaixo do véu.

— Cala a boca, aspirante, me desamarra logo! — a irritação a fez despertar um pouco mais.

Ele chegou mais perto e ergueu as sobrancelhas e murmurou — Seus olhos...

— Nenhuma palavra sobre isso, ou então arranco seus bagos, está me entendendo, moleque?

Ele fez que sim, desviou o olhar para aquele bolo de nós. Quem a amarrou só podia ser um maníaco. Sacou uma faquinha do cinto e começou a cortar a corda.

— Sou Kerdon Tassip. Vim com o mestre Crafith e mais uns amigos. — ele evitava voltar a encará-la.

— Will? — ela deixou escapar.

— Onde eles estão?

— Lá fora, enfrentando o tal Kímel Lorual.

O rosto da Capitã se contorceu. — Seus amigos não são aspirantes, são?

Tassip sorriu amarelo e fez que sim.

— Droga! Anda logo então!


Herdeiros de KamaneshOnde histórias criam vida. Descubra agora