Edwain estava um pouco deprimido. Mas toda vez que começava a pensar no casamento de sua mãe com o pai de Tarpin, um forte gongo zunia em seu cérebro fazendo emergir raiva, contrariedade e decepção. A alegria de contar com apoio em casa, para continuar com os estudos na academia, foi se desgastando à medida em que a perspectiva da consumação daquele casamento se aproximava.
Na roupagem, Eduard se mostrava igualmente abalado. Tíghas havia farejado algo, mas suas perguntas aqui e ali não arrancavam nada do rapaz. Não era algo sobre o que ele pudesse comentar. Outra coisa irritante era ver Tarpin se gabando de que logo estaria de mudança para o palácio, que seu pai daria um jeito na crise do reino, e outras baboseiras. Tarpin provavelmente receberia um quarto na Ala Real, próximo ao seu.
— Rá! Te peguei! — comemorou Tíghas. Era o terceiro toque. Ele venceu a disputa. Irritado, Eduard tropeçou e caiu sentado.
— Droga! Droga! — a face de Eduard tornou-se rubra.
— Muito bem, Tíghas! Levare a melhor sobre Redeuole, hoje, delú?
O baixinho limpou o suor do rosto e gingou um pouco, girando os ombros e relaxando os braços. Estava todo sorridente.
Tarpin aproveitou a oportunidade para zombar — Toma nortenho! Não adianta ficar nervosinho, isso não vai trazer vitórias.
— Tarpin, quem pediu sua opinione? Trinta agachamentos, apí!
Tíghas ofereceu a mão para Eduard. Ele aceitou.
Disse baixinho — Ed, não liga. Sei que cê é bem melhor que eu... Você só tá com a cabeça nas luas, né?
— Que tale um puouco solidariedade ao sinhore Tarpin? Todos vocês, trinta agachamentos, apí! Afinale, semana que vem o rapaz se tornará enteado da reina, delú?
Ed grunhiu, irado.
— Redeuole, sessenta, apí!
Eduard queria esganar todos eles, o mestre Farkas, Tarpin, Tíghas... Olhou para Arifa, o modo como o suor escorria pelos seus braços nus. Como fazia brilhar sua testa sob o sol fraco daquela manhã fria. Não. Estrangularia a todos, menos a ela. Ele queria abraçá-la, beijá-la, e tudo mais. Forçou-se a olhar para baixo. Era melhor encarar o chão do que se torturar com mais uma coisa. Suas pernas doíam, mas canalizava a raiva, agachando cada vez com mais vigor e velocidade.
Um pouco depois, a aula terminou. Seguiu para o vestiário. Um banho frio seria bom para fazer a raiva passar. Tíghas percebeu que Ed não estava para conversas e preferiu a companhia dos outros colegas.
— Vou convencer meu pai a expulsar essa escória nortenha daqui de Kamanesh — Tarpin dizia dois de seus seguidores mais adiante. Ele queria que Eduard escutasse. Tinha esperanças de que ele viesse tomar satisfações. Ed, apesar de toda irritação, já estava vacinado contra a falação de Tarpin. Vinha pensando muito sobre isso. Achava que seu avô, em seu lugar, ignoraria bravatas. Era necessário desenvolver a tolerância para governar, mas agir de modo enérgico, quando necessário. Ele e Tíghas vinham planejando uma vingança contra Tarpin, mas com o casamento se aproximando, os planos pareciam menos atraentes. Seu segredo já não era tão seguro quanto antes. Se alguma coisa acontecesse a Tarpin, temia que sua mãe, Lorcas ou o Mestre Ivrantz descobrissem. Precisava cancelar tudo. Falaria com Tíghas sobre isso.
No refeitório, se sentindo mais calmo, Ed procurou pelo amigo.
— Preciso falar contigo.
— Tá bom. Senta aí...
O lugar estava cheio de estudantes, muito barulhento. Ed falava baixo, mas não chegava a sussurrar.
— Estive pensando. Vamos cancelar o lance com o Tarpin.
— Não fala sério. Que foi?
— Isso vai acabar dando problema para nós.
— Vai não! Fica tranquilo.
— Não. Se quiser levar adiante, arrume o dinheiro. — Eduard fechou a cara e pousou o canivete na mesa.
— Cê sabe que não tenho essa grana, Ed.
— Pronto. Então está resolvido.
— Cê amarelô, Ed. Mas que bosta! Aquele babaca merece se ferrar...
— Vamos pensar numa outra forma.
— Cê amarelô e pronto! Só porque o pai dele vai casar com aquela puta da rainha!
Eduard só pensou depois de agir. Seu avô não faria aquilo. Mas ele fez. Vou sobre a mesa, espalhando comida, derrubando as bebidas e acertou um soco certeiro no nariz de Tíghas. O baixinho caiu para trás...
Tarpin logo apareceu para socorrer Tíghas.
— Tia as bãos di bim, poa! — Tíghas tacou uma cotovelada em Tarpin com a esquerda e com a mão direita segurou o nariz, aparando o sangue que escorria.
— Redwall, seu vira casaca! Seus dias acabaram! — disse Tarpin com satisfação. — Você vai ser expulso. Eu vou te denunciar!
— Cê não vai falar merda nenhuma, Tarpin. Eu fiz por merecer... — disse enquanto se levantava.
— É, seu plebeu, e quem vai me impedir? — retrucou Tarpin com escárnio.
Tíghas cresceu sobre Tarpin, como um gato que estufa os pelos e põe para correr um cachorro com o triplo de seu tamanho.
Ele proferiu, com um olhar mortal e um tom de voz baixo e ameaçador que deixou Tarpin assustado. — Olha aqui, cara. Cê acha que é melhor que os outros por que nasceu duma barriga de nobre, mas saiba que isso não salva ninguém de ir comer terra e sumir no fundo do rio. Se ocê se metê onde num foi chamado, eu corto sua língua fora, coloco ela goela abaixo e te faço sufocar com seu próprio sangue.
— Ei, não precisa pirar, moleque. — ele disse se afastando. — Os dias do Redwall e de qualquer nortenho estão contados, de qualquer forma...
Eduard ficou olhando para a cena assustado. Nunca tinha visto Tíghas daquele jeito. Na medida em que Tarpin se afastou, ele limpou o sangue do rosto e partiu para cima de Eduard. Por um instante, Ed achou que ele ia revidar, mas ele o pegou pelo braço, levando-o para fora do refeitório.
— Seu maluco de merda! Se tivesse algum professor ou serviçal da academia ali, era o fim, porra! — encurralou-o contra uma parede. Ainda estava irado, mas era um tipo de ira temperada, muito sob controle.
— Olha Ed, agora cê tá me deveno. E deveno feio! Eu sei que cê tem a porra dum segredo. Tá na hora de abrir o bico. Ou cê confia em mim duma vez, ou então procura outra pessoa para ser seu amigo. E então?
— Desculpa, Tíghas. Eu agi sem pensar.
— Não quero sabê de desculpas, Ed. Fala logo, porra!
Eduard suspirou. Estava encurralado. Não havia mais para onde fugir.
— Tudo bem. Eu vou te contar. Vou contar tudo... Mas talvez você não acredite no que vou te dizer.
— Duvido muito.
Ele confessou quase que num sussurro — Eu sou o príncipe Edwain.
— Quê? Caralho! Putz! — o rosto de Tíghas se iluminou num sorriso. — Porra, Ed! — Socou o amigo no ombro com força. — Agora sim, tudo faz sentido. Muito sentido mesmo!
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Herdeiros de Kamanesh
FantasyCerca de vinte anos após a abertura de um novo elo para as dimensões abissais, e da liberação da praga de mortos-vivos sobre o reino de Lacoresh, um novo reino ainda frágil, Kamanesh, tenta se erguer das cinzas do antigo império. O jovem príncipe E...