Luto

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Era um dia cinzento. Nuvens carregadas anunciavam a chuva. Kamanesh ainda estava a uma hora de caminhada. Não era comum, mas em dias como aquele, a fé de Yaren parecia escorrer e vazar pelos pés. E os pés estavam doloridos, o caminho foi duro. De cima, vinha uma pressão que colocava o peso do mundo em seus ombros. Ele não era do tipo de ceder a lamentar-se, ao invés disso, agradecia. Tinha pernas fortes para continuar sua caminhada. Olhos bons para enxergar até mesmo nos dias sombrios. E mesmo que não sentisse a presença de Deus mais forte ao seu lado, racionalmente sabia que ele estava lá, em toda parte, e que tudo corria de acordo com seus desígnios.

Sua fé não o isentava de passar por maus bocados, para ele, a relação com Deus nunca foi assunto de barganha. Não esperava nada em troca por suas ações, ao contrário, colocava seu corpo e alma à disposição para servir. Mas quando a angústia o tocava, pedia: "Oh, Senhor! Guie meu caminho! Dai-me forças para cumprir os seus desígnios". E assim por diante...

Cruzou com uns poucos viajantes e camponeses pelo caminho. Seus sorrisos e cumprimentos nem sempre eram correspondidos. A coisa não estava fácil para ninguém. Via rostos tristes, cansados, quase cinzentos. Pessoas que pareciam a um passo de se tornarem zumbis. Para alguns, a vida era dura e cobrava trabalho incessante. E ainda assim, o sustento estava sempre ameaçado. Nos tempos antigos, toda a terra era cultivada e ocupada por rebanhos, mas aquilo não era mais possível depois da Praga de Maurícius.

Ao avistar as muralha, ergueu as sobrancelhas. Viu bandeiras negras hasteadas entre as ameias.

"Alguém importante certamente morreu" ele pensou, e com isso resolveu apressar o passo.

Os cães vieram farejá-lo, como o de costume, e Yaren percebeu que o olhar dos sentinelas era vago e triste. Sim, Yaren vinha sentido um pouco esfera psíquica que emanava do grande burgo. Era o sentimento de perda, manifestado por muitos na cidade que fizeram fincar no coração do rapaz aquela angústia, o desânimo. E isso agora, vinha cada vez mais forte.

— Quem morreu? — ele perguntou sem sorrir.

— O General Kandel... — disse o guarda.

— Meu Deus! Que grande perda! — Yaren ficou chocado com a notícia. Vinha pensando no caminho em procurar por Kandel para relatar o que houve em Situr. Entrou na cidade, agora atordoado e um pouco sem rumo. A atmosfera opressora cresceu e sequer lembrou-se de orar por alguns instantes. Ele mesmo, agora vagava pelas ruas, como um zumbi. Quando deu por si, estava subindo a escadaria da antiga catedral de Kamanesh. A construção fora pouco utilizada pela Real Santa Igreja. Em dias comuns, ficava fechada e só abria em datas especias, ou para os cultos que serviam à nobreza e a alta burguesia. Mas a nova doutrina dos Naomir agora havia transformado o templo numa lugar movimentado e frequentados por todos, em especial, pelos pobres e miseráveis. Havia uma sopa que era servida em seu interior na hora do almoço e para muitos, era a única refeição feita no dia. Yaren então percebeu que estava faminto. Havia caminhado desde muito cedo, comendo apenas um pequeno pedaço de queijo farelento.

Seguiu a longa fila, mas em pouco tempo tinha uma tigela com o caldo fumegante em mãos. O noviço que servia o reconheceu.

— Monge Yaren! — usou, por reflexo, o antigo título do rapaz.

— Danel? Sabe que não sou mais monge...

— Desculpe, é a força do hábito — e deu uma risadinha.

Yaren gostava muito daquele noviço. Era um rapaz espirituoso e com muita vocação.

O ex-monge recebeu um cutucão. A fila atrás dele era grande, e aquela conversa atrapalhava o andamento. Yaren mudou de lado e sorveu um pouco da sopa. Danel, e vários outros noviços continuaram o serviço.

Agora podiam conversar sem causar tumulto. Danel mexia a enorme panela com uma concha e servia cada um que se aproximava com tigelas em mãos.

— O que tem feito?

— O mesmo de sempre. Vou seguindo a vontade de Deus.

O noviço falou baixo, não que fosse totalmente necessário, pois havia muito barulho no ambiente. — Sabe que eu, e muitos outros, temos grande simpatia por suas ideias. E também, muita fé de que é de fato um profeta. É difícil mudar as coisas, mas não desista. Naomir também enfrentou grandes obstáculos, assim como os Deuses enfrentaram imensas provações para salvar a humanidade.

Yaren sorriu. — Fico feliz que pense assim. Me faz pensar que talvez tudo que eu vivencie não seja apenas loucura.

— E por falar em loucura, sabia que antes de morrer, o general autorizou que a Real Santa Igreja abrisse as portas aqui em Kamanesh?

— Bem, isto é uma surpresa.

— Pois, sim. Veio um pedido de Lacoresh e ele julgou que não era papel do governo determinar qual religião o povo do reino deveria seguir. De qualquer modo, não passa de uma igrejinha miúda. Uns dez clérigos a estão fazendo funcionar e os cultos tem atraído fiéis, tanto pessoas de mais idade, antigos fiéis da Real Santa Igreja, quanto alguns jovens.

Yaren escutava o rapaz sorvendo a sopa e no fim, deu com os ombros. — Cada qual deve procurar sua fé à sua maneira. O importante é conseguir se aproximar de Deus.

— Certamente, irmão.

— E por falar neles — Yaren indicou uma dupla que passava sob o enorme portal da catedral. Um deles estava todo de branco, inclusive as luvas. Yaren reconheceu aquele rosto rosado e cheio de marcas. Era o Ékzor DeGrossi. Ele vinha ao lado de um homem mais velho, grisalho e com um manto vermelho. Ambos não repararam a presença de Yaren ali, vestido como estava, e com sopa nas mãos, passaria por um camponês.

Ambos se benzeram ao entrar no local, olhando para o alto e apreciando a arquitetura. Passaram direto pela área onde era realizado o serviço e foram ter com um dos Naomir mais graduados próximo ao altar.

Yaren respirou fundo. Aquele ambiente e a conversa com o rapaz fez com que se sentisse melhor. Ele sorriu ao sentir o peso ser removido de seus ombros e disse — Tenho que ir, Danel. Que você possa continuar no Bom Serviço. — na verdade, sentiu um pouco de pressa de sair dali. Sentia que um encontro com os clérigos lacoreses poderia ser uma má ideia.

O noviço retornou o sorriso e despediu-se — Que os Deuses o acompanhem.

Yaren saiu com passos ligeiros e foi direto à sede dos Naomir. Tinha esperanças de que o irmão Teol o recebesse de volta. Ele fizera trabalhos diversos no monastério em troca de um lugar para dormir e um pouco de comida. Mesmo que não pudesse ficar, iria pedir a Teol material para escrever duas cartas. Seria melhor enviar uma comunicação formal aos Blackwings e à diretoria da Academia com as informações que sabia a respeito do rapto da Capitã.  

Herdeiros de KamaneshOnde histórias criam vida. Descubra agora