O Plano de Lorcas

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Kamanesh estava de luto. Bandeiras negras foram içadas em homenagem ao General Kandel. O militar fora o braço direito do Rei Dwain e simbolizava valores da velha e nova Kamanesh. Seu corpo foi queimado numa pira funerária na Praça da Meia-Lua. Não se cogitava fazer definições quanto ao futuro do reino enquanto os três dias de luto oficial não expirassem. Mas reuniões dos antigos conselhos, suspensos por ocasião da lei marcial, voltaram a acontecer. O clima era tenso e a história do demônio infiltrado no palácio espalhou-se por toda a região. Até mesmo as aulas na academia foram suspensas.

Vários ex-conselheiros pediram audiências com a Princesa Kátia e com o Príncipe Edwain. Ambos recusaram todas as que foram possíveis, mas acabaram recebendo um ou outro mais insistente. Já vinha a pressão para o retorno dos conselhos. E era enorme. Havia muitos argumentos a favor, mas Edwain sabia que se os conselhos retornassem, seria o fim de do reino.

O palácio estava apinhado de cavaleiros fazendo buscas em rondas. E assim, a família real não gozava de nenhuma privacidade. No salão íntimo, na Ala Real, estavam Edwain, Kátia, os cavaleiros Zéfiro, Galdrik, como guardas, e o velho Lorcas. Este último quase nunca saía de casa, mas dadas as circunstâncias, resolveu fazer uma exceção. O velho jurista havia sugerido o luto de três dias, para que ganhassem tempo.

Havia poucas opções para Kamanesh. Aceitar a proposta de Lacoresh e ser reanexada, voltar com os conselhos e provavelmente ter destino semelhante, colocar o poder nas mãos de Edwain, o que era muito arriscado, ou colocar o poder nas mãos de da Princesa Kátia e fazer dela rainha. Havia precedente recente, a Rainha Hana de Lacoresh reinava, mas o poder era oficialmente exercido pelo marido, o Príncipe Kain. No caso de Kamanesh, ter toda a pressão do poder nas costas de Kátia também não era um bom prognóstico. A viúva era nervosa e voluntariosa. Sob pressão, poderia por tudo a perder.

O velho Lorcas defendia a única opção disponível.

— É o que estou dizendo, alteza. O casamento não precisa ser consumado. Se feito da maneira correta, em dois anos o Príncipe Edwain poderá ser coroado e o casamento desfeito.

— Está dizendo que sou incapaz de governar? — ela estava zangada e além de tudo, ainda fragilizada após o trauma recente.

— Por acaso se sente confortável com a ideia? — retrucou o velho.

— Não. — Ela não mentiu, mas não gostava nada da ideia de casar. — Mas casar-me? E com quem?

— Um nobre com experiência em campanhas militares.

— Um velho? — seu rosto torceu-se de desgosto.

— Talvez não. É verdade que não sobrou muita coisa da nobreza dessas bandas. Temos uns quatro barões morando aqui em Kamanesh, mas seus títulos são mais de consideração do que de fato. Eu pensei em alguém com renda e que ainda defenda uma fortaleza, ainda que pequena.

Uns poucos nomes passaram pela mente de Kátia e de Edwain também. E o jovem pressentiu o que Lorcas ia dizer com um arrepio na espinha.

— Pensei no Marquês de Jenesh, Jon Tarpin.

"Não! Não mesmo!" pensou Edwain. Isso faria dele e Ive Tarpin parentes conjugados.

A princesa Kátia parou para ponderar. Jon Tarpin não era de todo mau. Era viúvo como ela. Tinha até um filho da idade de Edwain. E não era feio, nem gordo. Tinha idade, mas não era um velho ainda.

Kátia deixou um sorrisinho escapar. E Edwain entrou em desespero.

— Não mãe, não pode se casar com um... — e interrompeu o que ia falar. Na verdade, não conhecia direito o pai de Ive, mas suspeitava que também fosse da mesma estirpe.

— Ora filho, não me venha com ciúmes numa hora destas. Estamos discutindo o futuro do reino. O seu futuro.

— Sua mãe tem razão, rapaz.

Ele ficou quieto remoendo o ódio.

— Acho que posso fazer isso. Posso casar-me com Jon Tarpin.

— Argh! — ele deixou escapar e fez menção de sair para seu quarto.

— Não alteza, nossa conversa aqui não terminou ainda. — o velho Lorcas segurou-o pelo braço.

— Não? — indagou a princesa, imaginando o que mais haveria.

— Temos um outro assunto importante a tratar. A continuidade de seu treinamento.

Kátia logo foi falando — Ora, senhor Lorcas, isso não é um problema, Edwain poderá muito bem...

— Não, alteza. Há algo que precisa saber. Algo que precisa ser decidido.

— Mas que assunto é esse? Fale de uma vez!

— É sobre a continuidade dos estudos de Edwain na Academia.

— Academia? Como assim? Do que está falando? — Edwain tinha a impressão que sua mãe aumentava de tamanho quando sobrevinha a irritação.

— Era um plano de Kandel. Vamos rapaz, conte a sua mãe.

Edwain queria sumir. Aquilo fora totalmente inesperado. Ele sentiu que era o fim.

— É verdade, mamãe. Eu já estou estudando na academia há alguns meses.

— Como assim? Isso é impossível! Não tem como eu não saber de algo assim!

— Estou matriculado com outro nome e frequento a escola sob disfarce.

— Disfarce?

— Um disfarce mágico. Foi um plano de Kandel, Mestre Ivrantz e do Senhor Lorcas.

— Plano? Que loucura é essa, meu filho. Você tem os melhores tutores aqui no palácio, frequentar a academia não faz o menor sentido.

— Não, mãe, faz sim! Meus tutores sempre pegam leve comigo, porque sou seu príncipe. Não me levam a sério de verdade. Mas na academia, como um qualquer, não sou favorecido em nada. Tenho que me virar...

— Mas porque, filho? Eu não entendo.

— Eu quero ser bom como o vovô. Quero ser um governante digno para Kamanesh. Para isso, eu tenho que me preparar da melhor maneira possível.

Edwain achou que sua mãe não entenderia. Que o proibiria de continua nos estudos, mas então, lágrimas rolaram por sua face e ela veio abraçá-lo.

— Oh, meu filho. Tenho tanto orgulho de você. Você é muito como seu avô, mas também, tem muito de seu tio Clyde. Eu sei que vai ser um bom rei, sei que sim.

— Quer dizer que posso continuar com os estudos?

— Sim, se é o caminho que escolheu, sim, meu filho.

Edwain saltou de alegria. — Uau! Nem acredito!

Os cavaleiros Zéfiro e Galdrik observaram a cena surpresos. Lorcas logo levantou a voz dizendo aos dois.

— E isso precisa permanecer em absoluto sigilo. Edwain continuará frequentando as aulas sob disfarce. Enquanto isso, teremos muito trabalho organizando o casamento e nos preparando para enfrentar as trevas. Não foi confirmada a existência da base de Whiteleaf no Planalto de Or, Cavaleiro Zéfiro?

— Sim, Senhor Lorcas, no entanto, a base é bem menor do que se esperava.

— É, mas pode ser apenas a ponta de um iceberg.

— Ice-o-quê?

Lorcas rolou os olhos. — Ah, deixa quieto. — E resmungou — Que pessoas mais incultas...

Herdeiros de KamaneshOnde histórias criam vida. Descubra agora