Banquete gelado

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O palácio de Kamanesh estava movimentado. Mesmo com toda a crise, a Princesa Kátia fazia questão de uma cerimônia apropriada de casamento. Era algo que ela não esperava, mas já estava contente por estar acontecendo. Já para o príncipe Edwain, não poderia haver coisa pior no mundo. O salão estava lotado. Havia a nobreza, clero, os militares e os comerciantes mais ricos do reino. A disponibilidade de boa comida e bebida era tímida e era uma expressão do momento difícil pelo qual o reino atravessava, mas ainda assim, para muitos, especialmente os jovens, era um banquete como não se via há muitos anos.

Edwain se esforçava para não exibir a cara mais fechada e carrancuda do reino. Seus sorrisos eram forçados, mas serviam. Sua mãe já o repreendera com um olhar brutal por mais de uma vez naquela noite. Era difícil não ser rude com Ive Tarpin, que agora insistia em chamá-lo de irmão. Edwain detestava Tarpin com todas suas forças, mas ao invés de pular em seu pescoço e estrangulá-lo, conseguiu dizer.

— Não, obrigado Ive. — estava sendo apenas frio, mas considerava aquilo um esforço gigantesco que fazia em memória do que seu avô lhe dizia. Um rei precisa ter estômago.

Tarpin falava num tom paternal — Eu te entendo, irmãozinho. É normal ter ciúmes. Se minha mãe estivesse viva eu não ia gostar nada de vê-la se casando de novo, mesmo que fosse com um nobre tão magnífico como meu pai.

Edwain deu um meio sorriso e acenou muxoxo — É... isso... — Olhou para o pai de Tarpin. Segurava a mão de sua mãe. Mais tarde, estaria segurando bem mais que isso. Era um homem forte, com barba impecável, vestido como um rei. Estava com as bochechas vermelhas e era todo sorrisos. Mas tinha uns dentes amarelados e tortos. Edwain tinha nojo daquele sorriso. Queria acertar um porrete naquela boca afetada e fazê-lo afogar-se em seu próprio sangue. Sua expressão voltou a formar uma carranca, mas antes que piorasse.

— O quê? — Tarpin levantou-se num sobressalto.

Edwain virou-se para olhar o que havia chamado a atenção de Ive. Ele viu, não muito longe, Arifa de braços dados com Tíghas.

— Aquele plebeu! — o rosto de Tarpin ficou vermelho — Como que ele entrou...

Edwain levantou-se e seguiu Tarpin depressa. Se ele estivesse presente poderia evitar um desastre.

Tarpin ia acabar com a raça de Tíghas, mas Edwain colocou-se ao lado e indagou.

— São amigos seus, Ive?

Tarpin teve que se conter. — Ah, sim, Alteza. Esta é a Senhorita Arifa...

Arifa corou. Nunca tinha estado na presença do príncipe. Curvou-se numa vênia exagerada e um pouco desajeitada. Edwain mordeu os lábios. Ela estava esplêndida. Linda. Um vestido beje, bem cortado. Os cabelos louros num penteado sofisticado e havia maquiagem em seu rosto. Aquilo fez o coração de Ed disparar. Tomou sua mão e beijou.

— Encantado.

— É uma honra conhecê-lo, Alteza.

Tíghas não foi apresentado, mas fez uma pequena vênia, tinha um risinho irritante estampado nos lábios. Parecia se divertir ver Tarpin ao lado de Ed, sem saber que ele era na verdade seu inimigo Eduard Redwall.

— São colegas de classe lá da academia. — conseguiu dizer Tarpin engolindo sua indignação.

— Uma moça tão bonita estudando na academia? Quem diria! — disse o príncipe, também se divertindo um pouco com a situação.

As orelhas de Arifa ficaram tão vermelhas que bem poderiam iluminar o salão caso todas as velas se apagassem. Ela gaguejou, sem saber o que dizer.

Tarpin acenou para os dois e disse — Foi bom vê-los. Vamos, Alteza, tenho alguém que quero lhe apresentar.

Edwain não queria ir, mas Arifa aproveitou a deixa e quase correu dali levando Tíghas consigo.

— Jarden, Cavaleiro Jarden! — Tarpin tocou o braço de um homem forte, alto e careca. Ele se virou para encarar a dupla. Edwain se encolheu ao ver o rosto duro e cheio de cicatrizes daquele homem. Seus olhos eram cinzentos. Seu olhar o penetrou como uma faca. Parece ter demorado uns instantes até entender o que se passava. Então a carranca se suavizou e ele emitiu um arremedo do sorriso acompanhado de uma vênia discreta.

Sua voz de pedra raspada disse — Um prazer conhecê-lo, meu príncipe. Sempre fui um grande admirador do rei.

Edwain forçou um sorriso e cumprimentou o grandalhão. Mesmo sendo uma cerimônia social, o cavaleiro estava de armadura. Tarpin ia dizer alguma coisa, mas foi interrompido por Edwain, ficando com a boca aberta por um instante.

— O prazer é meu, Cavaleiro Jarden. Campeão de Jenesh, sua fama o precede.

Jarden ergueu uma das sobrancelhas falhadas e deu um meio sorriso. — Então já ouviu falar de mim.

— Como não?

— Acho que nos veremos bastante, alteza. Vim para ficar, juntamente com Lorde Tarpin.

— Certamente Kamanesh ficará mais protegida. — elogiou Edward, agindo como seu avô gostaria. A melhor abordagem em relação aos inimigos é mantê-los o mais próximo possível. Pediu licença e escapou rápido deixando Tarpin para trás. Edwain ainda tentou localizar Arifa no salão, mesmo que não fosse conversar com ela, adoraria admirá-la mais um pouco. Várias pessoas o cumprimentaram tomando seu tempo e impedindo seu avanço. Membros dos conselhos que ele tinha suspendido não faziam questão de cumprimentá-lo e pareciam felizes com o casamento, pois imaginavam que Jon Tarpin iria voltar as coisas para como eram. Já de longe, Edward deu uma olhada em Ive Tarpin, Jarden e mais dois outros cavaleiros usando as cores de Jenesh, cinza e verde. Não gostava nada do modo das expressões em seus rostos e do modo como pareciam cochichar.

Edwain escutou o característico sotaque axiano. Por um momento, esqueceu-se de que não era Eduard Redwall e soltou um cumprimento animado para o professor.

— Mestre Farkas!

Ele o olhou com certa surpresa, procurando endireitar a postura, que estava um pouco desleixada.

Fez uma vênia exagerada — Alteza! — Edwain notou que ele estava um pouco embriagado.

Edwain procurou uma forma de corrigir sua mancada — Meu instrutor de esgrima sempre fala muito sobre o senhor.

— Ah, sim. Ele estudaire, comigo... Mande lembranças a ele, delú? — e se afastou ligeiro, forçando um andar e ar mais sóbrio do que havia demonstrado logo antes.

Ewdain voltou a olhar para a mesa principal e ficou carrancudo espiando o ex-Marquês de Jenesh, e que se tornaria seu padrasto naquela noite. Chamariam-no de Arquiduque de Jenesh, sua mãe, assumiria o título de rainha, mas todos sabiam que quem iria governar era o maldito Tarpin. Seu estômago afundou... Todas aquelas emoções estavam ativando uma área de sua mente adormecida até então, apesar dos esforços repetidos do Mestre Crafith para despertar o Jii em Eduard. Naquele momento ele sentiu que Jon Tarpin se tornaria seu maior inimigo, mais ainda que seu filho, mais que os demônios que ameaçavam invadir Kamanesh. Ele sentiu uma onda de ambição se espalhando à partir do noivo de sua mãe. Não sabia explicar, mas naquele instante, teve certeza que não demoraria até que Tarpin mostrasse seu caráter. Não demoraria para que Tarpin eliminasse todos os obstáculos para sua ascensão definitiva ao poder. Edward sentiu que ele seria capaz de matá-lo e à sua mãe para assumir o trono de Kamanesh. Os dois trocaram olhares por um instante e Edward ficou todo gelado ao ver aquele sorriso que assumiu, aos olhos dele, um ar diabólico.

Herdeiros de KamaneshOnde histórias criam vida. Descubra agora