É seu dever...

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Ailynn não era capaz de se reconhecer. Já ocupava o posto de comando há vários anos. Aquilo fazia parte dela, mas não mais. O que tinha feito de si? Uma pessoa amarga que espanca alunos para lhes ensinar uma lição? Olhou para gotas de sangue em sua bota. Ali devia haver o sangue de inimigos, não de um garoto mimado qualquer. Sentia raiva, mas mais que tudo, seu coração estava gelado. Um vento frio soprou no pátio fazendo o véu e seus cabelos se agitarem. Os alunos haviam saído deixando-a sozinha ali. Quem mais ela tinha, senão inimigos ou pessoas que no mínimo desconfiavam dela? E então como se fosse uma resposta à suas emoções, a primeira neve do inverno começou a cair. Ver os flocos rodopiando a fez se lembrar da ocasião em que seu tio a levou para longe de seus pais, para nunca mais voltar. Na época, ela chorou, não queria ir. Nevava durante todo o dia. Ela fora levada, às pressas, para um esconderijo nas montanhas onde viviam refugiados do regime do Rei Mauríciuis. Chegou no refúgio quase congelando, coberta por uma fina camada de neve.

No presente, ficou parada, pensando, deixando a neve se acumular sobre seu corpo, até que vieram até ela.

— Ailynn, precisamos conversar.

Ela estreitou os olhos ao encarar Yaren, mas não disse nada.

Ele não tinha nada além de seu manto simples, então estremeceu e disse — Seria melhor conversar num lugar aquecido.

— Não me venha falar mais daquela baboseira sobre perdão e Deus...

— Não, nada disso. Mas tenho uma coisa ou duas a dizer a respeito de dever. Venha comigo, afinal você me deve.

— Devo o que?

— Alguma consideração pelo trabalho de ir até a Necrópole e auxiliar em seu resgate.

Ele estava certo quanto a isso. Então ela engoliu a bile e o seguiu, mesmo que a contragosto. Seguiram pelos corredores quase vazios. Era a hora do almoço e a maioria dos alunos estava no refeitório. Então, Yaren tomou as escadas que iam para o subterrâneo. Lá ficavam alguns depósitos, laboratórios e o escritório do excêntrico Mestre Dornall. Foram além, até o final do corredor. Ele abriu uma porta e a convidou para entrar. Havia um fogão de metal ligado ali dentro, instalado com o escapamento entrando no reboco mofado da parede. Algumas cadeiras quebradas, um pouco de lenha, e um colchão de palha com uma manta poeirenta no canto. Estava quentinho lá dentro, mas tinha um cheiro de mofo danado.

— É onde estou ficando — Explicou Yaren — Meinard arranjou para mim. Parece que ainda tem gente lá fora querendo me matar.

— Certo.

— Dá para fazer chá e até cozinhar... Tenho até um caneco para visitas, aceita? — Yaren ergueu a chaleira do tampo do fogão, mas acabou servindo apenas a si mesmo.

— Sente-se — indicou uma cadeira de encosto quebrado e sentou-se numa com três pés, escorada na parede.

— Eu vi sua aula, agora há pouco.

— Não tem mais o que fazer?

Ele ignorou aquilo e prosseguiu — Não foi dura demais com seus alunos?

— Não. Nem a metade do que poderia.

Yaren bebeu um pouco do chá e suspirou. Ao menos aquilo estava cheiroso ali.

— Bem, conversei bastante com seu tio antes...

Ailynn quase saltou da cadeira — Meu tio?

— O Sr. Will, me contou... Além do mais, você acabou de falar sobre ele a seus alunos.

Ela havia se esquecido disso. Estava confusa.

— É. Ele disse que confiava em mim. Enfim. Conversamos sobre muitas coisas, uma delas, é claro, foi sobre você.

Herdeiros de KamaneshOnde histórias criam vida. Descubra agora