Os bestiais avançavam numa carga frenética em direção à muralha. Vinham centenas de linhas e carregavam algo parecido com aríetes.
Um soldado nervoso, zombou — Olha como são estúpidos! Acham que vão derrubar uma muralha com esses tocos...
O mesmo soldado não demoraria a pagar por ser linguarudo.
Os bestiais já estavam bem perto de modo que centenas de arqueiros e besteiros fizeram chover flechas sobre a horda enlouquecida. Muitos bestiais caiam, outros continuavam avançando, mesmo com uma flecha ou duas em seus corpos. Quando uma tora ameaçava cair, outros bestiais vinham para segurá-la e seguir avançando. Eram troncos de coníferas jovens, ainda finos, mas bastante longos. Alguns cotocos de galhos se projetavam ao redor dos troncos e era nelas que os bestiais seguravam.
O olhar da feras peludas era de pura loucura. Muitos soldados estavam colocando os olhos sobre bestiais pela primeira vez. Não era comum que se afastassem de seu território para se aproximar de Kamanesh ou Lacoresh. Muitos tinham pelos negros, outros marrom. Os focinhos e dentes pontiagudos conferiam uma expressão feroz, e os olhos pequenos e escuros, profundos, não sugeriam nenhuma empatia humana. Alguns vestiam peças de armadura em péssimas condições, enferrujadas e partidas, outros vinham pelados ou seminus. Eram criaturas ferozes e destemidas, disso não havia dúvida.
As pontas dos troncos haviam sido cortadas afim de fazer pontas e quando chegaram perto da muralha, enterraram estes no chão, fazendo-os fincar e depois empurrando o tronco para o alto até que ficavam na vertical escorando na muralha. Na outra ponta havia ripas pregadas de modo que os troncos se apoiassem contra a muralha sem escorregar para os lados. Esses troncos seriam inúteis para homens escalar, mas os bestiais tinham garras afiadas nos pés e nas mãos, além de muita força e agilidade. Com isso, começaram a subir num ritmo frenético em direção às ameias. Os arqueiros e besteiros derrubavam em grande quantidade, mas mais deles surgiam subindo.
Visto como um conjunto, parecia uma colônia de insetos escuros tingindo as muralhas cinzentas de marrom e negro. Aqui e ali, aluns bestiais conseguiam saltar sobre a muralha caindo nas ameias. Uma confusão de urros e sangue espirrando, corpos de homens e bestiais caindo agora, para ambos lados da muralha. Os homens alocados nas torres seguiam em segurança, disparando flechas sem parar e em alguns casos, a reserva destas começava a acabar.
As ameias entre as duas torres, local onde estavam Edwain, a Capitã, o Sgt. DiBrec, e mais alguns blackwings era uma das poucas que conseguira repelir os bestiais antes que subissem ao topo. As flechas não os fazia recuar, mas o fogo convocado pela Capitã e alguns blackwings, sim. Uma olhada ao longo da extensa muralha, revelava alguns pontos de resistência, ao passo que em outros, uma grande quantidade de bestiais conseguiu penetrar e já desciam, se espalhando pelas ruas da cidade provocando pânico e destruição por onde passavam. Algumas pequenas companhias de cavaleiros montados logo se deslocaram para dar combate aos invasores, eliminando boa parte com certa facilidade.
A massa de bestiais do lado de fora agora começava a minguar. Uma massa de cadáveres e corpos de moribundos se empilhava ao longo da muralha. Mas antes que pudesse haver alguma comemoração, linhas e mais linhas compostas de centenas de arqueiros do exército de Whiteleaf se aproximaram disparando nuvens de flechas que subiam e caiam, principalmente sobre as torres de onde ainda eram disparadas flechas opositoras. O avanço do inimigo parecia bem calculado, concentrando-se nas partes em que os bestiais haviam produzido mais estrago. Os arqueiros continuaram disparando, dando cobertura aos homens que avançavam carregando longas escadas enchendo o ar com seus gritos de guerra. Muitas delas conseguiam ser apoiadas contra a muralha e logo havia filas e mais filas de homens de Whiteleaf escalando a muralha em pontos esparsos. Defesas eram deslocadas para impedir o avanço das tropas, mas em muitos casos, chegavam tarde demais. O Sgt. DiBrec gritou:
— Vamos homens, todos para a um-oito-sete! — a guarnição de DiBrec cobria os espaços entre as torres cento e oitenta e sete e cento e noventa. O flanco esquerdo fora o mais prejudicado e necessitava de reforços.
— Arqueiros, derrubem-nos! — DiBrec gritava, sua voz já vacilando e a garganta ardendo.
A Capitã disse — Chad, Mão-Pesada, desçam com o rei e sigam para integrar as defesas em Clyderesh. Rorke, Brannem, sigam para o palácio e evacuem o local. Não poderemos defendê-lo. Nossa próxima linha de defesa será na ponte e por fim, na cidadela.
Edwain estava em choque. Nunca havia presenciado uma batalha. Viu homens morrendo ao seu lado, estava nervoso e sua bexiga parecia que ia explodir. Ainda assim, fez menção de protestar contra as ordens da Capitã.
— Não temos tempo, alteza. Lutou bem aqui e já provou que tem coragem para participar da linha de frente. Terá mais oportunidade de lutar em Clyderesh, isto é certo. Agora vá!
Edwain obedeceu, deixando o local, com certo alívio para seguir até a cidadela do outro lado do rio.
— Jules, Rencock, Mirth, comigo! Vamos derrubar esses desgraçados.
Os quatro, ao invés de descer as escadarias para subir mais além, onde estava formada a brecha, subiram para a torre seguindo a Capitã. Lá no alto, encontraram alguns arqueiros mortos, outros feridos, caídos e apenas dois ainda disparando. Tomaram arcos dos homens caídos e se posicionaram para atirar.
— Flechas flamejantes, na escada! — indicou a Capitã.
Os quatro convocaram os Sagrados Ofícios num uníssono — Icte Sept Flamare!
As flechas voaram, três delas ficando-se na lateral de uma das escada e outra errando o alvo, mas atravessando o braço de um soldado que caiu gritando para morrer lá embaixo.
Os quatro apontaram os braços direitos — Ergem Potero, Oném!
Então, as pequenas chamas das setas cresceram para formar uma bola de fogo que engolfou a escada e em poucos instantes a labareda subiu e quebrou o apoio dela contra o muro, derrubando os homens que ainda estavam no meio do caminho.
— De novo! — Ordenou Ailynn.
Conseguiram atingir a escada mais distante, mas não a derrubaram tão rápido quanto a primeira. De qualquer maneira, interromperam um fluxo de inimigos entrando por ali. Dali, deram apoio atingindo soldados inimigos que haviam conseguido subir. Por ser uma posição mais alta, dava para ver que o inimigo abrira muitas brechas daquele ponto até a porção mais ao sul da muralha.
— Vamos descer! Vocês dois, também. — ordenou aos arqueiros lacoreses.
Lá embaixo, uns poucos bestiais e soldados de Whiteleaf eram perseguidos e mortos pelos homens da Saltadores. Mais além, podiam ver um volume maior de tropas inimigas avançando sobre a cidade, várias casas sendo incendiadas. Ailynn olhou para aquele caos e se culpou. Ela deveria ter planejado uma segunda linha de defesa. Mas ninguém havia imaginado que pudessem entrar em Kamenesh tão depressa. Tudo aconteceu em menos de uma hora desde que o ataque teve início. É claro que ela não estava fazendo tudo sozinha, havia outros oficiais, cada qual tomando suas decisões, afinal, a cidade era grande demais.
— Retirada! Retirada! — ela gritou. — Para a ponte. Formaremos linha de defesa na ponte.
— Blackwings, comigo. — e tomaram suas montarias para seguir em direção ao palácio. Ela queria se certificar que o local estivesse sendo evacuado. Ela suspirou aliviada ao ver que a guarda do palácio formava uma linha de defesa fora dos portões e que os civis, nobres e criados, jorravam para fora tomando a via leste rumo a Clyderesh.
— Nós vamos ajudar com a cobertura. — quando ela notou, viu que além dos três cavaleiros que vieram junto com ela à partir da muralha, havia mais de sessenta homens a seguindo. A linha de defesa na rua lateral da entrada do palácio começava a ceder. Devia haver uma centena de soldados de Whiteleaf avançando sobre os defensores. — Vamos homens! Carga!
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Herdeiros de Kamanesh
FantasyCerca de vinte anos após a abertura de um novo elo para as dimensões abissais, e da liberação da praga de mortos-vivos sobre o reino de Lacoresh, um novo reino ainda frágil, Kamanesh, tenta se erguer das cinzas do antigo império. O jovem príncipe E...