Depois de ficar acordada com os pensamentos revoltos até parte da madrugada, a Capitã dormiu pesado. A cama da estalagem era bastante confortável e ela estava precisando de um descanso. Despertou ao sentir uma movimentação em sua cama. Alguém estava sentado, ou deitado ao seu lado. Seu corpo foi tocado.
— Hégio? — ela indagou, sonolenta. Quando abriu os olhos, assustou-se ao ver um homem estranho. Saltou para fora da cama e gritou.
— Aí! Quem é você?
Um sujeito muito esquisito, semi calvo, de sorriso desdentado, dentes sujos, face cheia de perebas, vestindo uma roupa escura, respondeu debochado.
— Sou seu novo namorado: Kímel Lorual. — e deu uma piscadela marota para ela.
— O que fez com Hégio? — Seu coração estava acelerado. A visão daquele homem trazia repugnância.
— A pergunta certa é: o que farei com você, belezinha! Hehehe.
A Capitã usou suas capacidades para atrair sua espada para sua mão. A lâmina atravessou o quarto até pousar em sua mão. Ela avançou ameaçando-o com o gume.
— Uau! Que truque legal! Hehehe. Meu mestre vai adorar isso.
Irritada, ela avançou dando uma estocada. Kímel rolou para trás caindo da cama.
— Errou, hehehe!
A Capitã saltou por cima da cama e sua lâmina tinha sede de sangue. Mas o mago escapou com movimentos rápidos que não condiziam com sua aparência física. Era quase um velho, feioso e meio gorducho. Ela pensou ver algo emitir um brilho amarelado sob as vestes do oponente.
— Vamos acabar logo com isso, hehehe. — disse Kímel animado.
Suas mãos brilharam e uma projeção fantasmagórica das mesmas saiu de seu corpo se alongando e crescendo até segurá-la nos ombros. A Capitã gemeu. O aperto daquelas mãos mágicas era fortíssimo, como um abraço de urso. Ela foi erguida, suas pernas pendendo e se balançando. O ar, foi todo expelido de seus pulmões.
— Hégio! Yaren! — Ela tentou gritar, mas não encontrou forças. Estava sufocando.
— O monge não consegue nem ferir uma mosca! E quanto a seu namorado, não se preocupe! Ele não poderia estar mais feliz agora que recebeu seu pagamento... Hehehe.
A face da Capitã se contorceu. Não podia ser verdade. Hégio não a trairia. A magia apertava mais e mais até que tudo escureceu e ela desmaiou. Mas ainda podia ouvir a voz odiosa e a risada irritante daquele homem.
— O mestre vai ficar feliz, hehehe. Vai sim! Hehehe.
Kímel, que no passado foi conhecido pela alcunha de Kurzeki, saiu com ela saltando pela janela e levitando para pousar suavemente no solo enlameado, do lado de fora da estalagem.
Hégio saiu das sombras de um beco e interpelou o mago.
— Prometeu que não iria machucá-la.
— E manterei minha promessa. O mestre precisa dela inteirinha. Eu a desacordei suavemente, hehehe. — Kímel implicou com sua expressão malícia e sarcasmo.
— E o trato? — Hégio armou uma flecha apontando-a para a cabeça de Kímel.
— Como sabe, estou indo para o oeste, seu pagamento está seguro, no templo, à leste. Isto é, se você chegar lá antes dos sinos tocarem. Sugiro que se apresse, hehehe.
Hégio encarou Kímel com ódio no olhar, mas baixou seu arco e pôs-se a correm em direção ao templo.
Kímel gargalhou e foi para fora da vila saltitando de alegria levando seu prêmio nos ombros.
Yaren não demorou a compreender que a garota, que muitas pessoas viram ser levada por um mago feioso para fora da vila, era a Capitã. Soube que o mago das trevas matou um cavaleiro e deixou outro ferido quando passou pela muralha e deixou Situr.
Ele juntou os pertences dela que ficaram largados no quarto e foi procurar por Hégio. Procurou o dia todo, sem sucesso. Soube apenas que ele estivera no velho templo, logo cedo e que partira, deixando a vila pelo portão ao sul.
Cansado daquilo tudo, voltou à Taverna do Barão Ausente. Encontrou algum dinheiro nas coisas da Capitã e com isso pode comer e alugar um quarto. Ficou dentro dele, muito quieto meditando e rezando a procura de uma luz. Sua fé em um Deus único e superior era forte, mas sentiu naquele dia que as trevas faziam pressão contra ele. A proteção da vila contra maus espíritos e assombrações era fraca, se comparada a de Kamanesh. Era necessário fazer vigília. Durante muito tempo orava silenciosamente.
"Deus! Dai-me forças para superar os obstáculos. Dai-me forças para enfrentar as trevas. Mostra-me o caminho, Senhor. Eu sou apenas teu servo." E assim por diante.
As sombras dos cantos do quarto pareciam se mover. Yaren rezava com fervor, mas sentia calafrios. Sombras queriam romper a barreira do plano físico e vir ter com ele. Yaren captou vislumbres de rostos com dor, raiva e angústia. Ele direcionou suas orações a eles.
"Deus, dá alívio àqueles que sofrem. Àqueles que estão em dor. Seja misericordioso, Senhor!"
Suas orações eram fortes e persistentes e após uma hora, as sombras se afastaram. A atmosfera psíquica do quarto havia voltado ao normal. Yaren suspirou aliviado. Levantou-se, esticou os braços e pernas. Exercitou-se um pouco à moda dos Naomir a fim de trazer vigor físico e flexibilidade a várias partes de seu corpo. Levou cerca de uma hora assim. Limpou o excesso de suor em um pano e deitou-se para relaxar e dormir. Deus, como sempre, havia ouvido suas preces.
Orou pela Capitã e por Hégio. Ele havia aprendido a gostar daquela dupla. Sabia que algo muito sério havia acontecido, mas independente do que fosse, enviou boas vibrações para a dupla de amigos.
De olhos fechados, ele sorriu. Soube que teria uma noite de descanso e depois o que fazer no próximo dia. Logo cedo, viajaria de volta a Kamanesh. Precisava contar a Kandel sobre a Capitã. Além disso, sentia que era lá, que Deus queria que ele estivesse. Havia um serviço sagrado a ser realizado naquela cidade. Yaren não sabia o que era, mas não ficava ansioso quanto a isto. Era sempre assim. Havia aprendido a confiar em sua intuição e aceitar os desígnios divinos. Respirando suavemente, adormeceu.
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Herdeiros de Kamanesh
FantasyCerca de vinte anos após a abertura de um novo elo para as dimensões abissais, e da liberação da praga de mortos-vivos sobre o reino de Lacoresh, um novo reino ainda frágil, Kamanesh, tenta se erguer das cinzas do antigo império. O jovem príncipe E...