Um grito de socorro

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— Olhe mestre, ela está acordando, hehehe.

A grotesca cabeça de zumbi abriu o único olho bom e examinou o corpo da mulher, seminu amarrado na armação de madeira de uma cama. Estava inclinada em cerca de sessenta graus. Estava pálida e tinha marcas roxas de estrangulamento no pescoço. O olho utilizado por Arávner não permitia uma visão de todo nítida.

— É uma das crianças do eclipse, mestre! — disse Kurzeki animado.

Atrás da dupla, havia três necromantes convocados por Kímel Lorual para dar suporte à magia de incorporação afim de prolongar sua duração.

— Eu não os deixei tocá-la, mestre! Tive que acabar com um deles, ele não conseguia se conter.

A voz do vetmös vinha arrastada, mas nítida — Poupe-me dessa ladainha, Kurzeki. Agora que a trouxeste, quero que inicies o procedimento para liberar seu corpo. Preciso possuí-la o quanto antes!

A Capitã girou o rosto e estava tonta. Sentiu a garganta ardendo e doendo. Além do esmagamento havia sede. Havia um cheiro horrível de carniça no ar, mas seu corpo já havia se habituado. Escutava palavras e viu vultos se movimentando, mas não conseguia compreender o que acontecia, nem mesmo sabia onde estava. Ela apenas gemeu. A voz soou arranhada e baixa. A respiração estava arfante.

— E não sejas tu desleixado, não vês que ela está com péssima aparência? Precisa dar-lhe água e alimentos.

— Sim. mestre! Tem razão... Como pude falhar assim? Sou mesmo um desastrado.

— Mas não exagere. Se ela for bem treinada no jii, poderá representar problemas. Tens sedativos?

— Claro, mestre, dei uma dose a ela ontem.

— Pois então trata de continuar com isso. E antes de separarmos o espírito do corpo, quero experimentar o corpo. Se houver incompatibilidade, faremos doutrinação para que ela se torne nossa agente.

— Desta vez vai dar certo, mestre! É um ótimo corpo... Na mente já flui o jii, e não apenas isto, o corpo conduz bem o mana, poderá realizar magias além das faculdades de mentalista.

— Bom trabalho, Kurzeki! Agora deixes que eu descanse. Detesto essas incorporações em zumbis.

Kurzeki estalou os dedos deixando escapar fagulhas. Seu olhar desigual, de um maníaco, expressava deleite. Ele gargalhou alto.

— Finalmente, hehehe! A hora chega, hehehe! Venham, seus velhos inúteis! Ajudem-me com a mulher. Tragam água, sopa e um tubo de alimentação. O trio de necromantes não era tão velho assim. Dois deles tinham cerca de cinquenta anos enquanto o terceiro tinha seus sessenta e poucos. Eram remanescentes do antigo regime que buscaram abrigo na necrópole, após a Praga de Maurícius.

— Sim, senhor Lorual. — respondeu com voz rouca o mais velho, que era magro, careca e de rosto enrugado e manchado. Ele não gostava de Kímel, mas obedecia com resignação.

Um dos velhos companheiros havia sido morto pelo mago, naquela manhã. Rasgou a roupa da Capitã e estava a ponto de possuí-la quando Kímel chegou a aplicou uma terrível punição. Com seu feitiço das mãos etéreas esmagou os ossos do necromante que implorou para que sua vida fosse extinguida para livrar-se das dores lancinantes. Não havia sido a primeira vez que Lorual fazia uma demonstração de poder, mas havia anos que nenhum dos necromantes tivera qualquer conflito maior com o mago. Aquilo serviu de lembrete para os demais de quem era o chefe e quem era o mais poderoso. Gostando ou não dele e de seus rompantes de loucura, não tinham lugar para ir. A queda do regime necromante os deixou sem lar. Muitos que tentaram vivem em Lacoresh, Kamanesh ou Whiteleaf, acabaram presos ou foram mortos. Havia pouca tolerância à magia das trevas, e muitos magos e clérigos treinados para farejá-la.

O velho finalmente saiu, seguido pelos outros dois. Ficaram, no laboratório imundo, apenas Kímel, a Capitã, alguns zumbis amarrados e a urna que encerrava os restos de Arávner.

Naquele meio tempo, a Capitã retomou um pouco das forças.

— Quem é você? Onde estou? — sua voz saiu espremida e esganiçada.

Kímel trouxe uma toalha preta, suja e empoeirada e cobriu o corpo da Capitã. Ela melhor mantê-la assim antes que outro daqueles velhos degenerados começasse a ter ideias.

— Não está lembrada de mim? Sou Kímel Lorual, seu anfitrião. Seja bem-vinda à Necrópole.

A Capitã encolheu os lábios sentindo nojo do hálito pútrido do mago. Era pior que o bafo dos cachorros carniceiros do portão de Kamanesh. Os olhos negros dela pareciam ainda mais escuros naquele salão mal iluminado. Kímel não conseguia notá-los girando e examinando o ambiente ao seu redor. A Capitã sentia-se extenuada, mas talvez, aquela fosse sua única chance de fuga. Localizou uma adaga ritualística empoeirada sobre um balcão, não muito distante. Concentrando-se para utilizar o jii, fez a adaga voar contra o mago repugnante. O golpe foi certeiro, mas faltou um pouco de força para provocar o dano que ela pretendia. Ao invés de atravessar a garganta do mago, a adaga penetrou apenas dois dedos e ficou pendente.

— Iau! — Kímel gritou num misto de susto e dor. Pegou a adaga e puxou-a do pescoço fazendo jorrar um pouco de sangue. O sangue quente respingou no rosto da Capitã. Uma expressão de ira tomou conta do mago.

— Maldita bruxa! — socou-a com força, mas se arrependeu em seguida.

— Ai, ai! Quebrei meu dedo! Porra! Porra!

A Capitã quase sentiu a mandíbula deslocar e sua boca se encheu de sangue. Ela cuspiu. Observou o mago gemendo e sangrando. Forçou as amarras mas sentiu que estava bem atada. Estava fraca demais para um confronto físico e para escapar dali. Lembrava-se vagamente de haver mais pessoas ali antes. Se o tal Kímel estivesse sozinho, talvez pudesse derrotá-lo, recobrar forças e depois escapar, mas não poderia lutar contra mais deles. Então teve uma ideia. Sim, aquilo poderia ser sua única oportunidade. Lembrou-se das lições com Mestre Dornall na academia. Concentrou-se para emitir um grito psíquico. Mas não um grito de ataque. Era um grito com destino certo. Um grito de socorro. A Capitã rezou aos deuses pedindo para que o grito tivesse força suficiente para viajar muitos quilômetros até encontrar seu mestre.

Mestre Dornall cochilava em seu estúdio nos porões da academia. Sua mente, muito sensível, precisava de um lugar isolado e quieto para repousar. Um esforço constante de sua parte tinha que ser feito para bloquear as nuvens de pensamentos das pessoas ao seu redor. Ali, dois níveis abaixo do solo, ele conseguia, por vezes, relaxar. Foi quando recebeu o grito da Capitã. Ele levantou-se num sobressalto e quase perdeu o equilíbrio. Segurou-se em sua mesa e derrubou a jarra de água no chão fazendo uma bagunça e molhando seu tapete.

— Ela está viva! Em perigo! — murmurou o velho com sua voz grave.

"Will. Will, pode me ouvir?" o mentalista buscava a mente de Will Crafith, que fora treinado no Kishar por um discípulo do lendário Silfo Modevarsh. Will, que também era tio da Capitã. Dornall era habilidoso para formar uma comunicação de duas vias, em especial se o objeto da comunicacão fosse sensível aos fluxos do Jii.

"Sim, Mestre Dornall. É Ailynn, não é mesmo?" Will havia captado a imagem dela junto com o chamado de Dornall.

"Sua sobrinha está em apuros. Está fraca e encarcerada na Necrópole".

"Então é como Arze suspeitava. Ainda há necromantes na Necrópole."

"E capturaram a Capitã. Isso significa que não são fracos como ela supunha."

"Tem razão, Dornall. Vou organizar um grupo de resgate. Com a morte de Kandel tão recente e novo impasse político, os Blackwings precisarão de sua líder. Além do mais, eu jurei para minha irmã que cuidaria da Lyn."

"Toda Kamanesh precisa de seus melhores, Will. O momento é grave. As trevas se aproximam cada vez mais. As defesas astrais de Lalith e Lourish estão fraquejando. Temo pelo pior..."

Herdeiros de KamaneshOnde histórias criam vida. Descubra agora