Raiva sombria

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Ailynn estava amargurada. Sua vida havia mudado de uma hora para outra. Algumas pessoas ainda a chamavam de Capitã, mas havia perdido seu posto. Os blackwings agora tinham um novo capitão, Jarden, o campeão de Jenesh. Que piada! Aquele brutamontes não tinham as qualidades para liderar os blackwings, mas não havia como discutir aquilo. Não havia mais Kandel, ou seu tio Will a quem recorrer. Um dia depois de seu retorno, tudo estava arranjado para ela assumir a posição de Will na Academia. Imagine, ter que ensinar um bando de fedelhos chorões! Ensinar Kishar. Ela nem era tão boa nisso. Nunca seria tão boa quanto Will.

Mestre Dornall tinha em mãos uns papéis levados a ele pela criada de seu tio, a velha Dora. Ailynn havia herdado a casa de Will e algum dinheiro. Mas aquilo não era tudo. Dornall pode ver que ela estava tomada pelo ódio. Não era o momento certo para entregar todos os papéis.

Quando esteve com Dornall, ele quis saber tudo sobre o cativeiro. Sobre o tal, Kímel Lorual. E sobre a morte de Will. Ela mostrou, mentalmente algumas imagens, inclusive a do encapuzado misterioso.

— Sabe quem é este, Mestre Dornall?

O velho arregalou os olhos, como se soubesse. —Talvez... Um demônio terrível. Há muitos anos ninguém o vê. Mas não sei... Não, não pode ser.

— Um demônio que usa o Jii?

— O que acontece se, por exemplo, um Vanush possuir alguém como você, hã? O que acontece?

Pensar naquilo, a fez com que se lembrasse dos assassinatos: Nathannis, Kandel e outros. O cavaleiro Galdrik acreditava que ela poderia ser a culpada pelos assassinatos. Mas aquilo havia ficado para trás, afinal, ela não estava em Kamanesh quando Nathannis, Kandel e até mesmo Zéfiro foram mortos, estava?

Ela passava boa parte do tempo na academia. Ainda usava um véu, mas não mais o restante de seu uniforme e armadura negros da primeira ordem de cavaleiros de Kamanesh. Quando começou a dar aulas na Academia adotou seu nome verdadeiro. Queria ser chamada de Mestra Ailynn, mas ainda tinha que tolerar muita gente a chamando por Capitã, inclusive os alunos.

Dormia em sua nova casa, mantendo breves conversas com a criada, Dora. Estava inconsolável com a perda do amo. Era assim que Ailynn deveria estar também, mas a raiva a impedia de extravasar seu sofrimento, seu luto. Dora havia adoecido, mas Yaren vinha sempre visitá-la e levá-la ao templo. Era o mínimo que podia fazer em favor de Will. Ailynn estava se estranhando com Yaren. Se ele a viesse novamente com aquela história de Deus e perdão, seria capaz de espancá-lo. A raiva dominava suas horas, seus minutos.

Tinha raiva de ter perdido o posto. E bem num começo de uma guerra! De ficar perdendo tempo com alunos enquanto precisavam dela na frente de batalha contra Whiteleaf. Raiva de ainda ser chamada de capitã. Raiva daquele maldito mago louco, Lorual. Mas, principalmente, um ódio profundo por Hégio Greyhill. Aquele desgraçado, traidor. Odiava ter se deixado seduzir. Ter sido enganada.

O maldito tentou se explicar. Ainda podia ouvir aquela justificativa. Aquelas memórias a atormentavam.

— Eu não tive escolha. Ele tinha minha filha... Minha filha... Eu fiz o que precisava ser feito.

Racionalmente havia sentido naquilo, mas nada, nada que ele tivesse dito a faria perdoá-lo. Por mais que ele tentasse consertar... Tudo mudou por causa daquilo. Kandel estava morto. Se ela estivesse lá. Poderia ter feito a diferença. Seu tio não teria precisado partir num resgate suicida. Ainda seria a Capitã dos Blackwings.

— Eu voltei para salvá-la! Me arrependi!

— Seu arrependimento não vai trazer meu tio Will de volta, vai? — a imagem de seu tio, destroçado, olhos vidrados no céu voltava à sua mente. — Suma daqui! Vá para Lacoresh e para sua filha. Eu juro, se algum dia voltar a ver você em Kamanesh, eu o mato! Mato você, desgraçado! Traidor! Está me ouvindo? — e acertou um soco no meio dos olhos.

Hégio caiu com o nariz sangrando.

— Você está certa! Eu mereci isso. Merecia até mais. Acredite ou não, gosto de você.

— Cala essa sua boca antes que eu mude de ideia e acabe com você, seu traidor!

Malditos olhos sinceros. Maldita hora que abriu o coração para aquele desgraçado.

— Mas Ailynn... — ela o chutou. Zane e Yaren tiveram que segurá-la para que ela não prosseguisse com o rompante de violência.

Ódio fervilhou em seu coração naquele momento. Um rancor constante ficou com ela depois daquilo. E piorou depois de tudo que mudou com seu retorno a Kamanesh.

Aquele tal de Zane... Era outro problema. Não gostava nada dele e de seu problema, seu segredo. Agora também se via cúmplice da violação de uma das regras da defesa de Kamanesh. A preferida de Dornall, Josselyn, estava para morrer de tristeza devido ao rapaz ter sido mordido na mão por um carniçal. Bem, era para ele estar morto a uma hora destas, era para ele ter virado um carniçal, mas não! A verdade é que ele já havia sido mordido por um, anos antes. Sua mão e parte de seu braço estavam mortos e a Mestra Arze Termatus havia o acolhido. Ensinou a ele magia necromante proibida. Contanto que sugasse a energia vital de uma planta, ou pequeno animal, todos os dias, conseguia evitar o avanço da maldição de Maurícius. Ailynn nunca havia gostado da Mestra Termatus e agora sabia o porquê. Ela era uma praticante de necromancia. A maldita arte que fez ruir o antigo reino de Lacoresh. A maldita arte que fez com que ela, e outras crianças, tivessem nascido com aqueles malditos olhos negros. A arte que tornou toda sua vida uma fuga, um segredo e trouxe tanto sofrimento e solidão.

Ailynn socou o tronco da árvore repetidas vezes travando os dentes. Nem mesmo entrar no jardim de Lalith e Lourish mudava seu humor. Nenhum daqueles dois malditos sequer tiveram a consideração de vir falar alguma coisa com ela. Ela estava arrasada, mas também, cega pelo ódio e vibrações inferiores.

Na verdade, desde o primeiro dia em que ela visitou o santuário, os Nam-Lu de Lalith e Lourish tentaram falar com ela. Simplesmente não conseguiam sintonia. Suas palavras eram como vento. A imagem, não se formava na mente da Capitã. Não via nem ouvia nada. Se sentia abandonada.

— Devemos dar um tempo a ela — disse o espírito do velho silfo.

— Temo que não disponhamos desse tempo, Lou. O cerco sobre Kamanesh está se fechando. Apenas um milagre salvaria o reino a esta altura.

— Devemos continuar nosso trabalho e depositar nossa fé em Yaren. O destino cintila em sua aura.

— É verdade. — Lalith foi até a Capitã que socava a árvore dos frutos dourados. Abraçou-a pelas costas transmitindo a ela, boas energias.

Ailynn socou um pouco mais e foi sentindo fadiga. Ajoelhou-se. Apoiou a cabeça no tronco, bateu-a de leve, chorando de raiva. Depois virou-se e adormeceu no gramado, entre as raízes altas da árvore mágica.

— Ainda há muito deste fluido escuro nela. — observou Lourish.

Lalith estava ajoelhada ao lado dela manipulando energias — É muito grudento! Não consigo tirar.

A dupla de espíritos de luz tentavam arrancar o ectoplasma negro que envolvia o corpo espiritual de Ailynn.

O velho Lourish tinha uma expressão grave — Ela escapou por muito pouco. Talvez nunca se livre dessa sequela.

— Não pensei assim, Lou. Ainda há esperanças. Estou certa disso.

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