O Garoto Lobo

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Primeiro foi o cheiro.

Cheiro de medo, de algum modo ele soube. Logo, a visão. Homens correndo e tropeçando uns nos outros, fitando-o com olhos arregalados e horror estampado na face. Depois, o gosto. Gosto de sangue e carne. Carne de um homem se arrastando, com a perna dilacerada de onde sangue jorrou abundantemente. Em seguida, o som. De tiros e gritos, uma mistura de raiva e desespero traduzida em disparos e choro. Seus ouvidos vibraram e doeram ao som estridente deles.

Então, a dor! Balas atingindo seu corpo, seu sangue espirrando por todo lado. Ele caiu ao chão, grunhindo e banhado em sangue. E por fim: a raiva. Uma fúria crescendo dentro dele, um fogo capaz de consumir a tudo e a todos, incluindo ele mesmo. Um ódio que lhe tirou a sanidade e consciência, deixando apenas brutalidade no lugar. Não havia mais pensamento, apenas instinto. Ele era um predador, e nada mais que isso. Todos eram suas presas, e ele mataria um por um.

***

O barulho de batidas na porta o trouxe de volta a realidade. Lá estava ele, em um quarto apertado e mal conservado — seu lar pelas últimas noites. Seu nome era Andy, e aquele era o terceiro dia seguido em que acordou suado e assustado, o que não podia ser bom sinal. Sempre o mesmo sonho, tão real quanto uma lembrança... Só que não era. Não poderia ser.

Mais batidas, e agora mais altas. O garoto resmungou, vestindo uma calça e indo na direção da porta, pouco ligando para o cabelo bagunçado ou a cara de sono. Ao abri-la, se viu diante de um idoso magricela apoiado em uma bengala, usando boina e um camisão. O homem o olhou com desprezo, e então falou com seu característico bafo de cachimbo:

— Isso lá é hora de dormir? Quando tinha sua idade, as 11h00 eu já tinha trabalhado mais do que você em sua vida inteira.

Andy encarou o velho Fremman com ar de deboche. O sujeito era o dono das poucas hospedarias da cidade, um homem azedo e orgulhoso. O hóspede bocejou preguiçosamente, e só então respondeu:

— Perdi a hora, velho. Mas me responde só: o problema é de quem mesmo?

— Olha lá como fala comigo! — berrou ele, balançando a bengala ameaçadoramente. — Mas é muita ousadia em me faltar com o respeito, sabendo que o aluguel pela estadia que pagou venceu ontem. Tem até o meio-dia: ou paga, ou vai pra rua!

Andy nunca foi conhecido por sua paciência, e acordou com ainda menos.

— O recado foi dado, velhinho. Já posso voltar a dormir?

— Acho bom não tentar me enrolar, moleque. Não gosto de gente metida a esperta. — Fremman se afastou, o som da bengala marcando o ritmo do seu caminhar arrastado, rumo a escada que levava ao andar de baixo.

O garoto fechou a porta, respirando fundo. Aborrecido tanto pelo pesadelo, quanto pelo ultimato do velho. Principalmente por não ter como pagar pelos próximos dias. Olhou em volta, e viu a bagunça que o cercava como um reflexo da própria vida. Uma enorme lixeira, com dezesseis anos de merda acumulada. Quem limparia aquilo? Andy não fazia ideia, até aquele dia, nunca havia conseguido.

Depois que terminou de se vestir, pôs a mochila nas costas e saiu sem rumo certo. Ele adoraria dar adeus aquele lugar, mas que opção tinha? O jeito era arrumar o dinheiro e garantir mais alguns dias sob aquele teto fedorento. Um lugar velho como seu dono, e tão desagradável quanto.

Mudar de ares foi necessário, mesmo que doloroso para ele. Quando se tem o costume de quebrar a cara de cada sujeito mal encarado que cruza seu caminho, é só questão de tempo até bater no cara errado. E o tempo dele chegou. O jovem de olhos azuis e cabelos de um loiro escuro foi jurado de morte, se vendo obrigado a deixar tudo para trás. Amigos, colegas da academia, escola, sua mãe...

Filhos da NoiteOnde histórias criam vida. Descubra agora