Homem de Barro

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Tudo aquilo já fazia muito tempo.

Roger se mostrou um parceiro tão leal quanto útil, e após um ano agindo em conjunto, o Golem tirou a máscara e se revelou a ele. Paul Davis, o professor de Antropologia que lecionava na Universidade da pequena cidade de Bleak Hill. Paul Davis, o soldado que serviu no exército de Israel, até se cansar de tudo aquilo. Paul Davis, o homem que foi casado por quatro anos, até sua esposa ser dada como desaparecida. Paul Davis, o recluso de quem os vizinhos sabiam pouco, mas que sempre tinha um sorriso amigável e uma boa conversa quando encontrava com algum deles.

Esse foi o Paul Davis que Roger conheceu, aquele que qualquer pesquisa ou investigação poderia revelar. É claro que Roger também conhecia o lado que elas não revelariam, o homem que secretamente caçava aberrações noturnas, colocando sua vida em risco para salvar a de outros. Mas mesmo esse Paul ainda era uma ilusão. E isso, Roger não tinha como saber.

"Talvez a verdade seja um pouco mais cinzenta que esses tons de branco e preto", foi o que o próprio Paul disse a Roger quando o conheceu, e aquilo se aplicava a ele também.

Já era noite, muitas horas passadas desde que o professor revelou a Roger que Adam era agora seu aliado. Horas desde que Roger atravessou a porta e partiu irritado, sem entender como o caçador fora capaz daquilo. Paul estava sozinho no cômodo, com um celular em uma mão e uma garrafa na outra. Bebendo mais do que devia, pensava sobre sua parceria com Roger, sobre o passado, e sobre a pessoa cuja foto admirava no aparelho.

Era uma bela mulher, olhos e cabelos negros, com mechas na altura dos ombros e exibindo um sorriso. Seu par de óculos combinava com os brincos dourados e o cordão com a estrela de Davi.

—... Kellen — suspirou ele.

Paul olhou para a aliança dourada em seu dedo, refletindo sobre o porquê de mantê-la após todos aqueles anos, após a morte dela. Sim, pois para a família a jovem Kellen Davis estava desaparecida, mas Paul sabia a verdade: ela estava morta. Levantava-se novamente a cada noite, mas ainda assim, morta.

Uma lembrança ressurgiu em sua mente, a mesma que o atormentava há anos, quase todos os dias. Foi numa noite fria, em que uma mulher estava parada em uma rua escura e abandonada. Seus traços pareciam sutilmente mais belos após a morte, e também mais tenebrosos. A frente dela, de joelhos e sangrando pelo pescoço, o próprio Paul. Ele colocou a mão sobre o ferimento da mordida, tentando inutilmente estancar o sangue. Dos seus olhos escorriam lágrimas, as mãos trêmulas revelando o medo que tentava esconder da amada.

— Não me procure mais, Paul — disse ela, tom triste na voz. — Isso só vai te trazer mais dor.

— Kellen, por favor! Nós ainda podemos... — disse ele, tentando se pôr de pé enquanto buscava os olhos da vampira que foi sua esposa até pouco tempo atrás.

Em um piscar de olhos ela apareceu ao seu lado, o impacto de um soco a centímetros do seu rosto estremecendo a parede. As presas dela a mostra, os olhos fazendo o homem se sentir como um rato diante de um gato grande e feroz. O professor perdeu a voz.

— Não existe mais "nós", Paul. Kellen Davis morreu! — ela o encarou severamente, o levantando pelo pescoço com uma só mão. Paul torcia apenas para que seus olhos não demonstrasseem o medo que sentia. — A mulher que você diz amar, a mulher que já te amou, ela está morta.

A respiração dele ficou cada vez mais difícil, seus pés balançando acima do chão, as lágrimas embaçando a visão. O homem tentou não ouvir as palavras que penetravam fundo em seu peito, qualquer tentativa de diálogo impedida pela forte mão que esmagava seu pescoço.

— Eu bebo sangue, Paul, meu corpo só sobrevive assim. Esqueça seus sonhos de ter filhos, esqueça o sol, os parques e o romance. — Os olhos dela estavam tão vermelhos, que Paul jurava serem lágrimas se formando enquanto ele começava a perder a consciência. — Venha atrás de mim novamente, Paul, e eu te prometo que assim como eu, você morrerá. Só que diferente de mim, não vai levantar de novo.

As últimas lembranças dele envolviam falta de ar seguida de escuridão. Escuridão da qual Paul nunca mais saiu. Escuridão que deu luz ao Golem. Paul retornou do passado com olhos molhados, fitando o retrato na tela do aparelho.

— Eu matei por você, meu amor, com minhas próprias mãos. Eu me tornei um caçador por você, para encontrar você! O Golem foi aquilo que se levantou depois daquela noite. É o nosso filho, nossa cria das trevas.

De repente, um calafrio, e a sensação de estar sendo observado.

Paul sacou disfarçadamente a arma, se virando com ela apontada para a direção da presença. Encostado no canto mais distante do cômodo, um homem alto, de pele negra e dreads, vestindo roupas de couro sujas de sangue. O mesmo sangue que escorria pelo buraco no peito, resquício de um tiro de escopeta bem acertado.

— Nem vem apontar essa coisa pra mim — disse ele, sorriso intacto. — Isso aí não pode te ajudar não, cara. Nenhuma arma roubada de mim vai te ajudar.

O professor suava frio, e com as mãos trêmulas, colocou a arma sobre a mesa com dificuldade, evitando olhar para o homem. Quando se dirigiu ao quadro cheio de fotos e anotações, se viu diante de uma morena, corpo escultural em roupas de ginástica. Seu pescoço exibia um corte de uma ponta a outra, dele escorrendo sangue em profusão.

— O que houve, gostosão? Se assustou comigo, gato? — perguntou em seu sotaque latino, se inclinando sensualmente na direção dele, o decote generoso banhado em sangue.

— Vão para o inferno, me deixem em paz! — gritou ele, jogando a cadeira em direção a mulher.

Ela gargalhou, desviando quando deveria ser atingida pelo objeto.

— Nenhum homem me rejeitou antes, gatão — disse ela, zombando — É esse cortezinho que te incomoda? Engraçado, já que foi você que o fez, né não? É claro que só depois de se divertir comigo. De me enganar, como enganou todo mundo. Como sempre engana.

Paul avançou com dificuldade em direção a escada, tentando fugir do pesadelo. Porém, logo descobriu um sujeito sentado nos degraus dela, um homem de idade, careca e com a face surrada.

— Se divertindo, garoto? Enganando e roubando cada bendito caçador que tem o azar de cruzar teu caminho? — O velho segurava uma garrafa de cerveja que levou ao que restou da boca, derramando o líquido por toda a escada. — Isso não vai acabar bem, não vai não senhor. Esse pobre Roger vai acabar igual.

Paul estava nervoso, e suando sem parar levou as mãos à cabeça, abrindo e fechando os olhos, na esperança de todos sumirem ao abri-los novamente. No manual de psiquiatria ele encontrou muitas formas de nomear aquilo que o atormentava, e nenhuma delas envolvia as palavras "espíritos" ou "fantasmas". Mas quando se descobria que vampiros eram reais, todas as certezas se tornavam relativas.

O professor tentou ignorar as palavras ditas por suas vítimas, e ao fazer isso, sentiu mais presenças se juntando ao seu redor. Pouco a pouco elas chegavam mais perto, a agonia sufocante o reduzindo a um menino assustado e de joelhos.

— O que vocês querem!? — gritou, em desespero.

Um longo silêncio foi seguido de risadas e frases desconexas. E após um tempo que pareceu uma eternidade, ele ouviu sons de passos se aproximando, e uma voz familiar sussurrando em seu ouvido.

— Mate a vampira, mate o Tepes — disse a madre, a mão em seu ombro — Faça todos os demônios queimarem!

Ele abriu os olhos, sugando e soltando o ar, se esforçando para recuperar a calma. Aos poucos as mãos pararam de tremer, a calma retornando. E então ele se ergueu: novamente um homem, novamente só.

— Não me diga o que fazer, Pietra — falou, olhando para o espaço vazio onde antes estava sua última vítima. — Sou eu que decido quem morre ou não, e essa não é a hora do Tepes. Mas prometo que em breve, será a hora da Jeanne.

***

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E vamos ao próximo! 

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