O Despertar da Morte

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Seus olhos se abriram.

Pela primeira vez em séculos emergindo de seu sono atormentado, das lembranças amargas de um tempo que não pode voltar. E com olhos de um animal noturno, logo passou a enxergar os detalhes da tumba em que dormiu, receptáculo esculpido em ferro para abrigar um corpo sem vida. Seu corpo.

Um movimento dos braços e a tampa foi movida. O túmulo aberto revelando um mundo intocado pelo tempo: com paredes de pedra, altas colunas e arquitetura dignas de alguém como ele. Trajando roupas de um cavalheiro inglês de princípios do século XVIII ele se ergueu; seus longos cabelos brancos escondendo um corpo enfraquecido pelo tempo.

Tempo. Por quanto tempo teria ele dormido? E por que acordou assim, fraco, entorpecido e sem qualquer viva alma para lhe dizer a razão daquelas coisas? Para essas questões não encontrou resposta, apenas uma sensação crescente a tomar conta de seu pensamento: a sede. Uma sede intensa que o feria como uma lâmina na garganta, agonia que só fazia lembrá-lo do que era: um monstro que se alimenta de sangue. Um vampiro.

Monstro que ao abrir caminho por uma passagem secreta, caminhou novamente por sua casa. Se arrastando por corredores escuros, apoiou-se em paredes cheias de teias de aranha e mofo, ouvindo cada vez mais próximo o som de música. Uma melodia alta e estranha, que ele não conseguiu discernir os instrumentos. Sentiu por fim o vento, entrando por uma pequena janela, molhando seu rosto com as gotas de chuva. Uma visão nostálgica, capaz de arrastá-lo até muito tempo atrás.

***

Do alto da sacada de seu quarto, o casal olhou para o céu escuro, como se dele esperasse respostas.

- Uma tempestade está para cair sobre nossas cabeças - disse a jovem para o homem ao seu lado. - É medo o que vejo em teus olhos?

- Crê que eu teria algo a temer, que não fosse perdê-la? - respondeu ele, segurando em suas mãos delicadas. - Mais que qualquer outra coisa, temo não vê-la de novo.

Ele beijou as mãos da amada com ternura, ela apoiando-se no peito dele, como que buscando segurança e paz, diante do caos iminente. Ele a abraçou forte em resposta, seus olhos refletindo amargura.

- Viemos tão longe, comprando essa casa no lugar mais isolado que pudemos encontrar. Poucos empregados, poucos conhecidos, tudo para manter os malditos longe de nós. Tudo para preservar um pouco de paz! - O homem se afastou dela, apoiando-se na grade da sacada. O peso do mundo nos ombros. - Eu sabia que era apenas questão de tempo até nos encontrarem, só pensei em, quem sabe, mais dez ou quinze anos antes que transformassem nosso sonho em cinzas.

Ela abraçou suas costas, ele não querendo que suas lágrimas fossem vistas.

- Meu senhor, meu amado, o Gênesis já nos ensina que o paraíso não foi feito para durar.

Ao longe e por todos os lados, tornavam-se visíveis as dezenas de lamparinas brilhando na escuridão, marchando lenta e inexoravelmente rumo ao casarão no cume de uma colina sombria.

- Eles vêm para consumir nosso paraíso com fogo - disse o vampiro, sua íris vermelha. - Pois eu lhes mostrarei o inferno.

***

Tristeza foi tudo que sentiu. Sua mente ainda sem funcionar com clareza, mas aquela lembrança tornou seu corpo mais fraco e pesado que antes. Cada passo subindo a longa escadaria a sua frente foi difícil, mas pouco a pouco o farrapo humano que restou dele começou a discernir novos sons, dessa vez de vozes, sobrepondo-se ao ritmo agitado do qual se distanciou.

- Cansei de você fazendo doce! - voz de homem. - Já passou da hora de abrir essas pernas, santinha do pau oco.

Risos.

Filhos da NoiteOnde histórias criam vida. Descubra agora