Quem é você?

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Claire sentiu uma forte dor de cabeça, e abriu os olhos, assustada. Estava deitada em uma cama velha e fedida, a única iluminação vinda de um castiçal de velas acesso ao seu lado. Sua mente estava confusa, um emaranhado de imagens desconexas e conversas estranhas, algo sobre uma festa de universitários, com vizinhos a levando para algum lugar contra sua vontade. E claro, um estranho. Um estranho atraente e sombrio.

A garota se levantou, tentando se recuperar do que classificava agora como uma ressaca épica.

— A senhorita acordou, enfim — disse o homem de que se lembrava, vestido de modo antiquado. — Estava preocupado.

A garota viu o homem na porta do quarto. Com roupas de época, longos cabelos negros e belos olhos da mesma cor — uma figura impressionante. Claire não pôde deixar de pensar que deveria estar desconfiada, assustada até. Mas estranhamente, sentia-se segura.

— Escuta, não rolou nada entre a gente, não é?

— Vi que a senhorita estava mal, e a deixei descansar aqui — respondeu ele. — Garanto que nada além disso.

Ela suspirou, aliviada. Depois deu alguns passos pelo quarto antiquado... algo ali lhe trazendo uma sensação familiar que sequer compreendia. Instintivamente foi até a sacada, de onde tinha uma bela e única visão noturna da sua cidade sem grandes prédios. Sua universidade, a velha igreja Anglicana, as muitas casas de modelo antigo que se espalhavam despretensiosamente por terras cobertas de verde. Ele a seguiu até lá, parando ao seu lado.

— E a quem devo agradecer? — perguntou ela, com cara de sono e um sorriso.

— Me chamo Adam Turner, e sou o dono legítimo desta casa.

Ela sorriu mais ainda com a resposta, sem de fato acreditar nela. Aquele casarão enorme, antigo e mal cuidado não poderia ter um dono como aquele. Não o velho casarão da colina, que remetia a fundação da cidade e as tragédias que nela se sucederam. Único ponto turístico relevante da cidade, mas que sequer funcionava como tal. A casa mal assombrada de que tinha medo na infância e curiosidade na adolescência. O lugar em que pisava pela primeira vez.

— Lady Claire, sua alteza. — brincou, fazendo uma reverência exagerada. — Te disseram que a festa era a fantasia, é?

Ele hesitou por alguns instantes, até responder:

— Sim, uma fantasia. Quem se vestiria assim, não é verdade?

***

Adam sorriu, começando a se sentir novamente vivo, mesmo sem entender em que tipo de mundo sua maldição o fez renascer.

— Adam, me tira uma dúvida: você viu dois irmãos andando por aqui? Lembro de discutir com um deles, mas depois é tudo uma bagunça.

— Não. Gostaria de dizer que duelei com eles em sua defesa, mas a verdade é que quando a encontrei já estava deitada aqui, cansada e com sono. Nos falamos por um momento, mas logo dormiu como um bebê.

Ela levou a mão a cabeça, como se tentasse relembrar.

— É, perdeu sua chance de bancar meu salvador — respondeu, por fim.

— Algumas damas não precisam de salvadores — falou, pegando em suas mãos e lhes dando um beijo suave —, mas podem precisar de companhia, e eu gostaria muito de vê-la novamente, senhorita Claire.

Ela sorriu, com aquele mesmo sorriso que ele tanto amava. O sorriso da Alice.

— Pode me ligar quando quiser — respondeu ela, ao recitar uma sequência de números para alguém que nem mesmo sabia para que eles serviam, mas tinha boa memória. — Mas agora eu preciso ir, tenho uma amiga que deve estar doida me procurando.

— Compreendo. Até breve... — ele hesitou por um momento, ao perceber que a chamaria "Alice" —... Claire.

O homem a observou se afastando, bela como uma deusa vagando entre mortais. Não conseguiu desviar os olhos até o último momento, nem tirar o sutil sorriso dos lábios. Agora ele sabia quem era ela, e aqueles números decorados lhe ajudariam de alguma forma a encontrá-la. Parte dele gostaria de fazê-la ficar, mas Adam sabia que nada valioso como o amor se conseguia a força.

Uma vez sozinho, lembrou-se daquele que o aguardava logo abaixo.

***

Leonard despertou caído, desarmado e sentindo a cabeça doer enquanto seu algoz o puxava pela perna, como a um cão atropelado na estrada.

— Serei sincero com o senhor, não me sinto assim há muito tempo — o homem dizia para sua vítima, enquanto a arrastava. — Não sei se já se apaixonou de verdade, se amou alguém com todas as forças. Se já, sabe o quanto isso mexe com uma pessoa, como esse sentimento nos salva de uma existência sem sentido.

Nessa hora o carregador se virou para trás, contemplando um jovem completamente assustado, que tentou inutilmente se agarrar em algo no corredor, e chutar a mão que o puxava pelo tornozelo com a força de um gorila.

— Como dizia, estou realmente feliz hoje, muito feliz por encontrá-la — minha Alice. Ou como você deve conhecê-la: Claire.

— Cala a merda da boca, filho da... — a frase foi interrompida com violência.

Leonard viu tudo borrado, até seu corpo parar. Sentiu as dores, o gosto de sangue na boca e a raiva se acumulando no peito. Quando se forçou a ficar sobre a perna boa, se deu conta do irmão, logo abaixo. Barry estava caído, com os braços abertos e uma expressão de pavor. Não era o irmão, era o que sobrou dele. Seu corpo estava seco, com olhos esbugalhados e boca aberta. Havia sangue por todo canto, no chão a sua volta, no pescoço destroçado, e nas roupas manchadas. Menos no corpo.

— Só para concluir: hoje a noite eu encontrei algo muito especial, algo que eu estive esperando por anos, décadas, séculos, enquanto era atormentado pelas lembranças de minha tragédia e a dor da minha perda — o monstro dizia, enquanto se aproximava lentamente de um jovem trêmulo e apavorado. — O senhor tentou tirar isso de mim. Não é algo que se possa relevar.

Leonard balbuciou incoerências, sem firmeza na voz ou nos braços, antes fortes.

— Cada predador tem seus truques, hoje eu conheci os seus, e vocês conheceram os meus. Dois estupradores. Dois cães arredios e sempre no cio — disse o monstro, inclinando-se até ficar face a face com ele. — Geralmente eu mato apenas por necessidade, apenas quando a sede é grande demais para ser reprimida. Mas hoje não.

O homem congelou ao vislumbrar os olhos, vermelhos como sangue, e as presas que se revelavam na face do monstro. Contemplou o demônio, antes de ouvir as palavras finais.

— Hoje é pessoal.

***

Na cidade de Manchester, na varanda de um quarto de hotel, uma mulher olhava para o horizonte. Seus cabelos castanhos balançavam ao vento, suas mãos banhadas no sangue do cadáver de um homem caído ao seu lado. Seus olhos abertos em espanto.

— Algo grande despertou essa noite — disse ela, com um sorriso malicioso no rosto. — Espere por mim, queridinho, estou indo até você.

***

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