A Esposa do Demônio

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Antes daquela noite ela já previu o que viria. Viu fogo, ouviu gritos, sentiu a tempestade no ar. Mas guardou apenas para si. Ele estava feliz demais para ser perturbado pelo medo dela. Ele já tinha seus próprios demônios a atormentá-lo, ela sabia.

Aquela cidade era território de grandes alcateias de lobisomens, terra em que nenhum vampiro ousaria pisar. Adam era capaz de esconder sua natureza de qualquer um, mas foi apenas graças aos poderes dela que eles conseguiram se manter lá por tanto tempo sem chamar a atenção de homens ou lobos. Pensaram que aquilo os manteria protegidos. Uma ilusão.

Ela consultou outra vez as cartas, mas o resultado foi o mesmo. Um ciclo que se encerrava. A Roda da Fortuna. O Padre os descobriu, e se a Ordem do Dragão não pôde ir até eles, incitou o povo da cidade a fazê-lo.

E logo ela chegou: uma noite amaldiçoada, em que densas nuvens choravam sobre corpos de vivos e mortos. Diante da mansão, um espetáculo de sangue e morte que somente seu amado era capaz de proporcionar. O som de carroças e cavalos, disparos de mosquetes e de bestas, gritos de homens e animais em pânico. Se os lobisomens não avançarem contra eles lhes dava alguma chance, por outro lado, impedia qualquer tentativa de fuga da fúria do povo. Ela assistiu a tudo aquilo sem esperanças, com seu coração dizendo ser o fim. 

Outra carta foi tirada: A Torre. E como se dela caísse, Alice viu o povo antes gentil e amável com ela, gritar por sangue e morte. Adam partiu determinado a exterminar aqueles muitos homens que ameaçavam sua casa, e criando o inferno no meio deles, atraindo sua ira contra si, proteger a amada. Ela sabia que o vampiro fazia o impossível lá fora, mas também que as vezes, mesmo o impossível é insuficiente. Eles por fim chegaram ao seu lar.

Na defesa do casarão, apenas uma dúzia de homens. Homens de confiança de Willian Connor, único amigo do casal. Homens da própria região, muitos na verdade, maridos ou filhos das empregadas que o casal contratara há poucos anos. Foi um duro golpe para ela ver que dentre os doze guardas, cinco fugiram com parentes e espólios ao ver a aproximação dos inimigos, e os outros sete resolveram mudar de lado quando ouviram que seus patrões eram "uma bruxa e um vampiro". Bruxa, a desculpa perfeita para que aqueles homens "leais e obedientes" de antes, se achassem no direito não só de traí-la, mas também de tentar violá-la, para só depois entregá-la aos invasores. Infelizmente para eles, Alice Winnicott tinha uma espada, e sabia usá-la muito bem.

Mais uma carta: Nove de Espadas. Apenas desilusão e dor se seguiram. Foi com pesar que ela puxou a espada do peito do último dos traidores. Não esperava que o respeito e generosidade dela para com eles valesse tão pouco. Ainda assim, uma bruxa da sua categoria não tombaria daquela forma.

Sete corpos espalhados pela casa antes mesmo que os inimigos entrassem. Na verdade oito, pois uma das empregadas restantes não reagiu muito bem ao encontrar o corpo do marido pelo caminho, e decidiu que seria ela mesma a vingar seu amor. Não durou muito. Quando os inimigos chegaram, não houve resistência alguma para além de uma jovem com uma espada em mãos e um coração determinado.

— Vejam, a bruxa está matando seus próprios servos! — gritou um jovem ruivo e forte, para o irmão de lamparina e espada em mãos. Gêmeos idênticos aqueles que trezentos anos depois tentariam violentar Claire Winnicott.

Alice observou aquela dupla que subiu as escadas com olhos fanáticos, famintos por saciar seus instintos que pediam por sangue... e prazer. E olhando para eles, notou o quão mais monstruosos que o morto-vivo que amava eles lhe pareciam.

Com a beleza artística e precisão de uma bailarina, ela desviou da lâmina do primeiro, com duas estocadas rápidas ceifando a vida de ambos os irmãos. Seus corpos rolaram pelas escadas, em uma sequência capaz de perturbar os ânimos daqueles que invadiam e incendiavam seu lar.

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