2. A Fuga

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Aquele dia foi completamente diferente para Grace. Agora ela podia encarar o rosto do pai com um pouco menos de medo e também não se sentia intimidada pelos colegas na escola. Simplesmente os ignorava. A ideia de desaparecer para um mundo distante a inspirava, fazendo todos insignificantes. Nada a afetava.

A imagem do garoto não saía de sua cabeça e a esperança de fugir trouxe um conforto especial. Após terminar a aula, correu para a biblioteca e vasculhou os livros de contos teatrais e clássicos da literatura. Encontrou o que procurava: Peter Pan. Em seu sonho tudo foi insano demais para compreender, mas após acordar teve certeza que conhecia aquele nome. Um conto sobre um menino que não queria crescer. Ela leu o livro inteiro, passando o dia na biblioteca e retornou pra casa de noite.

- Onde estava? - James, o pai dela, perguntou quando ela entrou no pequeno apartamento onde moravam. Grace observou à figura infame, sentado no sofá segurando uma garrafa de cerveja apoiada na perna. Desleixado e com a barba mal feita, o maldito dava nojo. Um nojo que jamais ninguém seria capaz de entender, exceto aqueles que já passaram por similares experiências.

- Na biblioteca. - respondeu seca, evitando contato visual e correu direto pro quarto. Antes que ele viesse a falar alguma coisa, ela se trancou.

O coração estava a mil. A qualquer momento James viria bater à porta. Esperou longos minutos em silêncio e ele não veio.

Aliviada, jogou a mochila sobre a cama e de dentro tirou o livro Peter Pan para reler. A Neverland dos seus sonhos estava bem diferente de como era representada no livro. Assim como Peter, sem poderes e sem magia, a ilha não tinha mais seus encantos. No entanto, continuou tão impressionada com a chance de fugir, que nem cogitou que esse mistério seria um risco.

Na sua mente desesperada, ela via Peter como um salvador, que iria resgatá-la da vida infeliz. Ao se deitar, fechou os olhos e se concentrou no 'mantra' de sempre: Pense coisas bonitas, pensamentos felizes te fazem voar. Repetia na mente com fervor. Quando adormeceu, não encontrou nada. Foi um sono vazio, sem sonhos, sem fugas.

Acordou na manhã seguinte completamente desolada. Revoltada, chorou com ódio por não ter sonhado. Seria seu fim se não retornasse para Neverland. Ela precisava descobrir um jeito de partir pra sempre, com urgência. Devido a isso, seu dia foi horrível. Brigou com um dos alunos insuportáveis da sua classe, foi parar na diretoria, levou advertência e pra completar apanhou do pai. Para evitar pensar demais, pegou seu livro e leu inúmeras vezes enquanto chorava, procurando em frangalhos algum sinal daquela esperança que sentiu no dia anterior.

No fim da noite, estava isolada no dormitório, e o pai apareceu. Ela sabia o que ele queria e seria melhor obedecer, ao invés de lutar, para assim terminar logo. Ele se aproximou, passando a mão no cabelo castanho escuro da filha e a puxou para o leito. Pensar em coisas bonitas já não parecia resolver... e a ideia de fugir para Neverland estava se esvaindo junto com suas poucas esperanças.

 e a ideia de fugir para Neverland estava se esvaindo junto com suas poucas esperanças

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(...)

Passaram-se por volta de duas semanas e Grace não conseguia sonhar. Queria morrer e assim partir de vez para o mundo fantástico inalcançável.

Certo dia, ao retornar da escola pra casa, parou na plataforma do metrô e observou ao redor. Haviam poucas pessoas na estação. Ela pisou à frente da linha de segurança pintada no chão, quase se desequilibrando. Seria muito simples... pouco antes de o trem vim, ela se jogaria, e acabaria logo com aquilo. Respirou fundo. Uma dor exaustante trucidava o coração ao longos dos anos. Estava desistindo, de fato.

- Não faça isso. - disse alguém.

Grace se assustou e olhou pro lado. Viu uma menina que deveria ter por volta dos 10 anos. Era pequena, de grandes olhos azuis. As roupas infantis eram exageradamente coloridas.

- Ah... eu... eu não ia fazer nada. - respondeu, com a voz fraca, abaixando a cabeça e se afastando.

- Espere, tenho algo para te dar. Vai te ajudar. - a garotinha a seguiu, segurando a manga de sua blusa.

Grace a fitou confusa.

- Sinto muito... Nada que me der vai resolver meu problema. Não tem jeito...

- Você precisa me ouvir. Veja, eu tenho uma poção mágica. Essa poção vai te levar pra onde quiser. - explicou com cautela, entregando um pequeno frasco com um liquido azul cintilante.

Grace abriu a boca, perplexa, e pegou o frasco na mão. Analisou, hesitante.

- Que estranho...

- Eu sou uma fada. E eu sei que você precisava de algo pra fugir... por isso, não desista! Beba essa poção, e se deite pra dormir. Quando acordar, vai tá onde quiser! - ela disse com um sorriso iluminado.

- Você tá brincando, não é?? - riu por um segundo, sentindo-se idiota. Nessa hora o metrô chegou, parou na plataforma e começaram a descer incontáveis passageiros. A multidão veio contra ela. E a garotinha desapareceu. Não estava mais lá.

Grace girou em volta de si procurando atônita, porém só via rostos desconhecidos no acúmulo de pessoas passando e se acotovelando.

De qualquer forma, o frasco com a poção azul estava protegido em sua mão. Voltou para casa reflexiva, imaginando se deveria confiar na "fada". Talvez fosse uma guria boba, fazendo uma brincadeira, e a poção não significasse nada. Mas, como ela sabia que Grace precisava fugir? Isso era muito estranho. Tinha prometido para Peter que ia voltar. Ela jurou! Não desistiria.

Chegou no apartamento e seu pai não estava. Parecia perfeito demais pra ser verdade. Acreditou que fosse obra do destino. Correu para o quarto, trancou-se como de costume e sentou na cama. Analisou o frasquinho por longos minutos. Era agora ou nunca. Sem pensar mais, tirou a rolha e virou o liquido, bebendo tudo.

Sorriu tranquila e esperançosa. Fez o que foi dito, deitou e esperou.

Começou a se sentir relaxada e sonolenta. Teve a impressão de ver uma iluminação lilás vagando pelo cômodo, como suaves auroras boreais. Piscando devagar, Grace olhou novamente para o frasco que ainda segurava na mão, dessa vez vazio.

A aparência dele estava diferente. Aturdida, ela tentou se sentar, ao ver que na verdade era um frasco de veneno de rato! Não era poção. Não se tratava de um frasco de vidro delicado, e sim um pequeno pote de produto químico. Não era possível.

E então, tudo se tornou óbvio. Fada? Que absurdo. Grace não tinha visto fada alguma... aquela criança, possivelmente nunca existiu. Estava delirando? Ia morrer, afinal. Ou seja lá o que aconteceria... Percebeu, um pouco triste, e um pouco aliviada, que era o fim. Talvez Neverland nem fosse real. Talvez fosse apenas um sonho. Mas agora ela sabia, em sua miserável vida, que finalmente não mais existiria.

Dark Paradise || Peter Pan • OUATOnde histórias criam vida. Descubra agora