CAPÍTULO XXIX

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CAPÍTULO XXIX

Foi o inverno mais rigoroso de que se teve notícia na Ingla­terra. Começou em dezembro e prolongou-se até o final de janeiro, com as neves descendo em rajadas cegantes e acumulando-se em montes ao longo das ruas. Pela primeira vez, o Tamisa converteu-se em duro gelo. O vento varria sua superfície, expondo arestas que faziam pensar nas águas cres­pas de um mar branco.

Mas nem isso foi suficiente para manter londrinos presos dentro de casa. Sobre o rio congelado logo apareceram barra­cas iluminadas por candeeiros onde se vendia de tudo: casta­nhas assadas, cidra quente, pãezinhos recheados, livros, quinquilharias.

Christian, que viera ali à procura de livros, fechou com um gol­pe seco o que estava examinando e abriu caminho por entre a multidão de vendedores ambulantes. Depois, com as mãos enterradas nos bolsos do grosso casaco forrado de peles, que lhe caía até os saltos dos sapatos, seguiu pelas ruas desertas. Dobrou uma esquina e aventurou-se até uma barraca em alpendre. Atrás dos vidros sujos, uma vela iluminava jarras de porcelana, xícaras de florzinhas, taças pintadas a mão. Pa­rou ali e sentou-se na ponta de um banco de madeira, sob a névoa do lusco-fusco.

Tinha andado a tarde inteira, pensando escapar das ima­gens perturbadoras que sua mente remoía. Aquele rosto... sem­pre o mesmo rosto. Precioso, único! Estava ainda diante de seus olhos, ao alcance de seu gesto, mas na realidade tão infe­lizmente perdido...

Onde estaria ela, agora? Refugiada na casa de Patrick, vi­vendo a existência calma, sem surpresas, com que sonhara des­de o tempo em que era uma criada de bordel? Ou ainda no Continente, esperando o fim do conflito entre a Inglaterra e a América, antes de arriscar-se a atravessar o Atlântico?

Inconscientemente, seus dedos acariciavam a carta que guar­dava no bolso. Recebera-a havia dois dias de Simon Allerton, um agente secreto que trabalhava para o Ministério das Rela­ções Exteriores. A carta anunciava que havia uma escuna fun­deada ao largo de Livorno. A embarcação desfraldava bandeira alemã, mas, estranhamente, trazia a inscrição Anastasia Anne pintada no casco.

Seria o navio de Patrick? Nesse caso, o que estaria ele fa­zendo na Itália, onde os simpatizantes de Napoleão eram ain­da numerosos? Não percebia que essa região se transformaria num barril de pólvora, caso os rumores que corriam a respei­to do inquilino da ilha de Elba fossem verdadeiros?

Mas como Patrick podia saber? Poucos no ministério esta­vam a par desses rumores, que eram ainda mantidos sob sigi­lo, já que poderiam revelar-se improváveis. Afinal, de que modo Napoleão conseguiria formar e armar um exército da­quela ilha remota?

Não obstante, o Almirantado estava interessado em apurar se havia alguma veracidade nesses boatos. Assim que termi­nasse o duro inverno, alguns navios de reconhecimento dei­xariam a Cova de Londres para fazer uma investigação de caráter não oficial. Então, teria duas opções: tomar parte do comboio ou rumar para o sul, nas vestes de um cidadão co­mum. Essa segunda alternativa lhe daria mais liberdade para tratar de seus assuntos particulares e certificar-se se esse Anastasia Anne era realmente o navio de Patrick,

Desejava ver Anastasia? Essa era a questão que o perturba­va desde que recebera a carta de Allerton. Com os diabos, por que não desistia? Não era um tolo em perseguir uma ilusão, o reflexo de uma lembrança, a visão de um rosto que se trans-formava quando fitava o seu?

Se a encontrasse de novo, que faria? A princípio, ficara acor­dado à noite, alimentando uma vaga esperança de desforra. Nos últimos tempos, porém, outras imagens se modelavam em sua mente, tomando a forma de uma criatura que se entregava apaixonadamente a seus braços.

Equívoco de Christian GreyOnde histórias criam vida. Descubra agora