4. Guilherme

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— O que eu digo a vocês? “Foi mal”? Eu não sou dos melhores com despedidas, inda mais com gente que nem conheci. Além disso, eu não tenho culpa. Fazer o quê... É aquela história da hora errada e lugar errado. Enfim, nada faz sentido agora, mas eu sei que não estou louco. Loucura é quando a imaginação é tão fértil que é inevitavelmente confundida com a realidade, e eu não tenho tanta imaginação.
Sentado sobre uma rocha em frente aos dois montículos de areia, Guilherme jogava folhas secas aos pés do enterro dos corpos indigentes. Estava no meio do nada, num lugar onde julgou que ninguém iria. Havia cavado a madrugada inteira para enterrar os cadáveres inchados e fétidos como um cargueiro de pesca. A luz fria do sol da manhã não conseguia encher totalmente o bosque desconhecido, dando ao orvalho um reforço de obscuridade à sua algidez. Guilherme respirou fundo, e deu um riso discreto, carregado de agonia:
— Só que é bem fácil imaginar vocês dois furiosos comigo, agora.
Jogou fora o último pedaço de planta e caminhou através da garoa no chuvisco em direção à estrada. Era lá onde seu carro estava. Aquele carro maltratado, ele era a única coisa que havia sobrado – A única coisa que fazia Breno Guilherme olhar para trás. Havia uma boa vida a abandonar nas estradas cinzentas que levavam à terra dos paulistas, mas ele não podia voltar e destruir as vidas que tanto amava em casa.
Ele não sabia aonde estava indo, afinal Escobar não era o pai mais presente, e muito menos um homem que costumava fincar raízes. O mais novo historiador, porém, sabia que seu pai gostava muito das praias em Maceió, e que esta era a melhor época para elas. Escobar era o único apoio com o qual podia contar. Guilherme não queria envolver Cândida, sua mãe, em seus tão terríveis problemas. Ela era frágil como uma taça de cristal em todos os sentidos possíveis. E muito mais além disso, havia investido tudo nele, para que fosse o historiador que desde a infância desejou ser. Como explicar tamanha loucura com 0 poder de reduzir seu futuro a cinzas? No lugar de sua mãe, ele não gostaria de ouvir isso, então não tinha a coragem para também dizê-lo.
De dentro do carro as curvas horizontais das campinas sem fim, verdes como a natureza as fez, deslizavam para trás com velocidade indomável. Belos bosques de pinheiros avermelhados projetavam sua sombra fresca na estrada sedimentada enquanto o carro se dirigia rapidamente para uma pequenina cidade a quinze quilômetros. Guilherme viu o celular tocar, no banco ao lado. O nome que reluzia na tela era “Vana”. Guilherme já lhe havia negado muitos chamados. Sabia o quanto sua prima histérica berraria. Ela era tão irritante quanto as feridas da Catapora que assolava seu rosto. No entanto, ele buscou refletir que Vanessa apenas quisesse entender por quê não dera notícias. Talvez ele estivesse deixando sua mãe mais preocupada do que deixaria se contasse o que aconteceu na desastrosa noite. Resolveu, então, atender e ativou a função Viva Voz.
— Oi, Vana.
— O que...? Guilherme? Seu maluco imbecil! O que pensa que está fazendo?!
— Vana, me escuta, tá bom?
— Não, não e não! — ela gritou — como você teve a coragem de fugir desse jeito? Isso é inacreditável! Eu não acredito no que você fez. Inaceitável, inaceitável!
— Tá tudo bem, Vanessa. Não enche meu saco, tá?
— Você foi muito egoísta. — ela não parecia ouvi-lo — Não fale mais comigo, ouviu? Não fale mais.
— Vai ficar tudo bem, sua pirralha chata. Eu volto para casa logo. Diga à mamãe que eu terminei a faculdade. Vou visitar o Escobar e aí voltar para casa. Vai ficar tudo bem.
Do outro lado da linha, a menina começou a chorar. Guilherme podia ouvir seus soluços ecoando por quatro paredes bem fechadas.
— Vana? O que tá rolando, garota? Tá tudo bem?
— Onde você tá? Está dirigindo?
— Estou.
— Pare.
Guilherme parou o automóvel nas beiras da cidadezinha sem pensar muito. Começou a ficar assustado. Vana fungou algumas vezes e suspirou. Parecia estar precisando de companhia, mas desde o início da faculdade desenvolveu-se um afastamento entre ela e o velho amigo e primo. O formando em História não tinha muito mais tempo, e este pequenino espaço que sobrava era coberto por encontros sem sentido com garotas desconhecidas com as quais desenvolvia diálogos ante o barulho das músicas de festa. Desse modo, com o passar dos anos Vanessa tornara-se uma figurante em seu triste conto de indiferença, mas também passou a contar menos com o primo, que havia perdido o posto de melhor amigo. Ele, aliás, não a considerava tal qual ela a ele, pois achava sua constante preocupação irritante. Percebeu, entretanto, que em seu jeito pétreo havia perdido alguma coisa chocante que a prima sabia, e poderia se arrepender disso nos próximos segundos.
— Já estacionei. O que houve?
— A tia Candinha faleceu, Gui.
O rosto de Guilherme pendeu como uma cordilheira gelada cheia de neblina.
— Ela morreu, primo. — Vanessa repetiu em prantos.
— O que houve? — Guilherme perguntou muito pausadamente.
— Não sei. Ela só sentou e colocou a mão na cabeça. — Vana esfregava o nariz — foi tão rápido! Eles tentaram de tudo, mas nada deu certo.
Guilherme chorou. Chorou como nunca antes. Vana, desde o início, não conseguiu se conter. Ao redor, só havia as desconhecidas campinas, matagais, casas que não davam boas vindas e a ventania gelada e ardente que vinha direto do oceano nordestino. De tanto que viajou, nunca teria tempo de voltar e derramar as lágrimas no caixão de sua mãe. Não veria pela última vez o rosto solene de Cândida. Na estrada humana desenhada sobre o carpete verde da natureza, Guilherme não tinha mais a quem proteger e era ali onde suas lágrimas cairiam.
— Gui? — Vana chamou — Primo.
— O Escobar sabe?
— Não sei, ele não apareceu aqui. — ela limpava as lágrimas, em casa.
— Eu volto pra casa, não se preocupe.
— Precisamos de você aqui. — ela instou com serenidade — Tem uma vida pela frente.
— Eu volto logo.
Guilherme desligou o aparelho, jogando-o no banco de trás. Chorou novamente por horas, soluçando como uma criança consternada. Das piores coisas que sabia que faria em toda a vida, ser faltoso nos últimos momentos de sua mãe era algo que sem dúvida estava em último lugar. E por que não dizer que nunca entraria nesta lista?! Cândida foi o mais precioso tesouro que o filho tinha para si somente. Toda sua jornada, ele não pôde contar muito com os outros familiares, ainda menos com o pai, Escobar. Sentia, agora, que não possuía um lar, conquanto Vanessa o chamava para casa, pois havia muito mais a considerar como seu: o mundo era seu enquanto a mãe fosse seu lar. Então continuava a derramar lágrimas de dor — dor não de perder um ente, dor de perder parte do eu.
Ao fim daquela manhã, sua camisa estava molhada como se houvesse corrido. Ele olhou para a cidade novamente. Alguns garotos vinham caminhando debaixo do alto sol à companhia de um vira-lata com apetrechos caseiros que serviam para apanhar frutos em árvores altas. Ele limpou as lágrimas antes que chegassem.
— O sinhô precisa de ajuda, sinhô? — o menor deles perguntou — Tá sem gasolina?
— Tô tranquilo, cara. Valeu.
Os meninos trocaram olhares, ao sentirem o sotaque.
— O sinhô né daqui não, né? — o mais velho, ainda pequenino, entrou.
— Não. Não sei nem onde eu estou.
— O sinhô tá na divisa de Alagoas cum Sergipe. Pra lá é Sergipe. — o mais moço apontou com a mãozinha redonda.
— Entendi. Obrigado, garoto.
— Nada. Té mais.
Guilherme ligou o carro e o conduziu até um posto de gasolina na entrada da cidade. Estava fechado, mas ele ainda não precisava de combustível. Ele, contudo, estava morto de sede. Dirigiu-se até a loja de conveniências para hidratar-se com uma garrafa de água. Uma moça organizava alguns refrescos no refrigerador quando ele entrou.
— Bom dia! — ela disse, e quando se virou para ele, arregalou os olhos. Medindo-o, decidiu usar uma entonação mais interessada — Como posso ajudar?
Em outro momento, Breno Guilherme não deixaria que aquilo terminasse em nada, mas estava abatido de uma forma como nunca antes experimentou. O olhar de desejo mostrava o que aquela garota queria em seu íntimo libertino. Num ímpeto que avantajou seu decote profundo, ela foi até a bancada.
— Eu gostaria de uma garrafa d’água. — Guilherme pediu.
— Ah, — ela jogou a mão, penteando os cabelos escuros com os dedos no fim do movimento — Você não precisa comprar, sabe? Eu tenho água aqui comigo.
— Obrigado. Eu vou aceitar, mas também vou comprar duas garrafas pra viagem.
Ela ergueu uma sobrancelha olhando-o de cima a baixo enquanto descia alçando o traseiro. Guilherme olhou por um momento, mas não conseguia se interessar.
— Tá indo pra capital?
— Sim.
— Visita à família?
— Pior que é. — Guilherme refletiu. Ela apareceu novamente com uma jarra transpirando e um copo semicongelado.
— Que triste, saber que você não vai ficar na cidade. — disse, enchendo o copo. Ergueu seus olhos que remetiam à sensualidade.
Guilherme deu de ombros, desinteressado. Pegou o copo gelado e bebeu rapidamente.
— Então... — Ela quis mais uma vez puxar assunto enquanto pegava a jarra de volta. — Cê vem de onde?
— Ugh... — Guilherme esfregou o nariz. Queria pensar sobre tudo isto, mas a vendedora não deixava — Eu sou de São Paulo, mas vim da Bahia. Terminei a faculdade lá e... — ele parou para pensar — E vim contar a meu pai aqui.
— E agora você é bacharel em...?
— História.
— Legal. — Ela deu um pulinho que fez novamente os seios saltarem. O sorriso era belo e branco como o mais precioso alabastro. Guilherme piscou os olhos virando a cabeça para baixo e mais uma vez esfregou o nariz. Percebendo que ele não estava em um bom momento, a moça acabou desanimando e desistiu da paquera, mas continuou numa conversa sem interesses: — Eu gosto de História, mas sou mais ligada na época mais remota. O que você...
— As garrafas. — ele a interrompeu.
— Ah, sim, claro. — Ela caminhou com uma postura mais conservadora até o refrigerador. Pegou as duas garrafas e as trouxe ao cliente.
— Como íamos dizendo — Guilherme quebrou o gelo, pegando os produtos — Eu também sou fascinado pelos tempos mais remotos no país. Quero me especializar nessa época, no futuro.
— Sim, sim. — ela estava séria — Mais alguma coisa, moço?
— Não, apenas isso.
— São sete reais.
Ele puxou a carteira e retirou o dinheiro, entregando-o à jovem. Ela deu um sorriso fechado em agradecimento. Estava tentando ser indiferente. Guilherme não se importou muito, mas percebeu que era a primeira vez que tinha permitido que uma conversa com uma garota chegasse a tal ponto. Desde que pôs os pés na faculdade federal da Bahia sua matrícula pareceu significar mais um recorde a bater de troca de colchões do que uma formação, necessariamente, apesar de se tratar do sonho de sua vida.
Guilherme, aliás, era muito inteligente. Alguns olhares em direção às apresentações de slides e sua audição elogiável eram o suficiente para que ele pudesse aprender as complicadas datações e narrativas metódicas da História. Obviamente, a paixão pela ciência do tempo também servia de grande auxílio. Observar as extensas linhas da ação humana no tempo e no espaço era para ele como uma melodia harmoniosa o é para o músico ou a paisagem, para o pintor. Mas, como todo bom talento humano, este era deixado de lado pelo novo — o fascinante sentimento de liberdade que a faculdade distante de casa parecia exprimir.
Nesta manhã, ele percebeu que as coisas que pensou que fossem importantes não o eram. Nunca houve em seu lar prisão da qual fugir em direção à liberdade. Nunca houve braços e ideias carcereiras que o impediam de ser quem é. A adolescência se tinha acabado; a maturidade, começado a chegar. Agora, ele tinha a si mesmo para ensinar-lhe, pois o que havia consigo era puramente a solidão.
Devolveu um sorriso fechado à bela vendedora, saindo da conveniência em direção ao carro. Ela o acompanhou com olhos de compaixão. Sentiu, finalmente, que o cliente estava profundamente abatido. Ele era tão misterioso e complexo.
Guilherme bateu a porta e suspirou, olhando para a estrada que o levaria à cidade central do estado. O telefone vibrou mais uma vez, no banco traseiro. Ele esticou o braço para trás e tentou segurar à esquerda, mas nada havia. Voltou-se para a direita, e lá estava o objeto que brandia sistematicamente. Apanhou-o. Era um número desconhecido.
— Oi.
— Oi, filho. — a voz rouca de Escobar Borges tremulava do lado contrário da linha telefônica. Guilherme se surpreendeu.
— Escobar?
— Você está vindo para cá?
Guilherme estava feliz, mas não deixou que sua voz mostrasse isso.
— Depende. Como você acha que eu sei onde “cá” fica?
— Não seja tão ríspido, pra variar. Eu preciso falar com você.
— Onde você está?
— Venha à cidade.

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