14. Cecília

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"Você é uma gorda, imunda!", ela vociferava enquanto apanhava os cacos de um copo do chão, "Nunca vai encontrar alguém que te ame, sua maldita rolha de poço".

Cecília de Souza olhava para o chão, como sempre olhou na vida. Ela havia buscado não acreditar nas palavras de sua mãe, que se repetiam a cada deslize puramente humano que a menina cometia. Mas cada dia se mostrava mais difícil. Cabisbaixa e envolvida em seu silêncio, ela olhava o tapete sujo daquele sombrio cenário enquanto outras declarações imundas se adicionavam ao discurso daquela odiosa mulher. Parecia seu primeiro quarto, quando tinha seis anos. Na verdade, aquele escuro lugar imaginário era uma mistura de todos os quartos que ocupou durante a dura infância. Ambientes solitários onde compartilhava consigo mesma os descontentamentos que advinham de não ser amada.

Cecília ergueu os olhos molhados. Tudo parecia estar em "câmera lenta", como no cinema. Antes que pudesse ver a face de sua mãe, a mulher lhe deu uma forte bofetada. Ceci se apoiou com os braços quando caiu. O tempo ainda corria lentamente. Ela se suspendeu devagar, mas só depois de sofrer com o chute dos pés de quem a derrubara. Desta vez, pôde ver o rosto dela, enfurecido como uma serpente incomodada. Ao seu redor, o pai, os meios-irmãos, os amigos da família... todos riam dela e apontavam.

"Que ridícula", era o que exclamavam, "essa garota é ridícula".

Aquele ambiente parecia mudar. As paredes se moviam calmamente como leves ondas de uma lagoa. Os risos eram barulhentos como o bramido de uma multidão em festa sangrenta. A sensação térmica era tórrida como o sangue fresco que corre nas veias de um homem. Tudo parecia o mau sonho que era, mas também parecia tão real.

"Eu me arrependo de ter pegado você", a mãe sussurrou com fastio.

Ceci segurou a cabeça que doía e começou um grito que parecia não ter fim, enquanto a cena ao seu redor retornava e retornava constantemente. Desejava sair daquela agonia como a sepultura deseja os corpos. Até que no ímpeto seus olhos se abriram e ela estava no mundo real. Tinha agora a idade de vinte e cinco anos e estava na cama novamente. O sol entrava pela janela, iluminando todo o ambiente com a graciosa luz matinal que a natureza lhe deu. Esse era o único quarto que não estava em seu pesadelo, que também era uma lembrança. Ceci, na verdade, não conseguia sonhar com outra coisa. Havia feito algo para merecer uma vida tão miserável assim?

Ela sabia porque o quarto não estava em seus pesadelos: era um novo começo, uma vida independente e totalmente livre. Aquela mulher que se dizia sua mãe havia ficado para trás com todos os seus. Quem dera esse fato trouxesse um sorriso ao seu rosto. Apesar de tudo, o cargo daquela mulher, o de mãe, não poderia ser substituído, ainda que fosse adotiva. Afinal, quem era a mãe biológica que a abandonou, entregando Ceci às garras da enfermeira que fez seu parto? Seja quem for, Cecília não quer conhecê-la. Uma mulher assim deve ser ainda pior que a que a adotou.

Ceci retirou de cima de si o lençol e saiu da cama, que rangeu. No quarto vizinho, o bebê do casal barulhento chorava enquanto eles pareciam ainda acordar. Esse era um dos bons motivos de ela odiar morar neste condomínio: as paredes são finíssimas. Mas a garota se concentrou em outro detalhe desta vez: o choro do bebê lhe trouxe lembranças.

***

Aquela noite abafada em que a chuva bombardeava o teto não era uma noite comum. Ceci havia ficado sozinha naquela casa quente e sombria e a energia parecia oscilar. Seus pais adotivos sabiam muito bem do medo de escuro que a filha de dez anos tinha e nem se lembraram de passar em casa para busca-la. Mas mesmo uma criança conseguiria entender que a chegada de Celeste à família era mesmo a coisa mais importante e um erro assim era perfeitamente normal. Ela lembrou o quanto Célia, sua mãe adotiva, ficou empolgada, pulando no banheiro segurando aquele "pauzinho" que dizia que ela ia ser mãe. Por esse motivo, a ansiedade para ver o rostinho de sua nova irmãzinha era maior que o medo.

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