29. Nina

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As águas salgadas corriam para trás com a força de uma rajada de mangueira de incêndio. Nina não tinha ideia da incrível velocidade com a qual se movia em direção ao mar aberto. Abaixo, ela via o fundo do mar se distanciar, nitidamente como se estivesse usando óculos de mergulho. Olhou as mãos e a pele estava diferente. Parecia um cristal brilhante e o tom moreno de seu corpo tinha se tornado levemente mais claro. Linhas de uma pintura tribal em forma de algas e seres do mar passavam pelos braços, seios, pescoço e barriga. 

Ela olhou para os pés e tomou um susto ao ver que eles não estavam lá. 

— Meu Deus! — Nina gritou debaixo d'água, parando de nadar. 

Em vez de pés, o que lhe possibilitava nadar tão rapidamente era uma cauda de peixe que começava na virilha e possuía provavelmente quatro metros de comprimento, dividindo-se em duas pontas no fim. Escamas esverdeadas que brilhavam como pérolas a vestiam. Ela percebeu que podia respirar, mesmo que submersa. 

Nina possuía a habilidade da fácil adaptação, então em lugar de se amedrontar e sofrer ela estudou aquilo por alguns segundos e deu atenção às possíveis implicações. Pensava: "Ah, que ótimo! Eu sou uma sereia. Agora, a mídia com certeza vai me transformar num estereótipo".
Inesperadamente, Nina foi retirada da água por uma força que não conhecia. À sua frente estava Ester – isto é, Jaci ¬– com uma mão erguida para eleva-la. O corpo ereto e listrado com brilho e o cabelo azul e planando sem auxilio de vento davam à deusa uma forma tão encantadora e imponente que convidava qualquer olhar. Era de verdade uma deusa belíssima. 

— É necessário admitir — Jaci disse — que você me traz lembranças da honrosa e belíssima Deusa do Mar. Se não fosse por esse rosto frágil e a limitação plangente do tamanho humano...  

— Eu tava observando que você também é gatinha — Nina respondeu —, mas como é uma idiota narcisista... 

A deusa sorriu fechado. Apenas com o movimento dos dedos puxou Nina para perto de si. Nina sentia um peso de poder que a empurrava para longe, mas a deusa a mantinha perto. Jaci estabeleceu: 

— No mundo que eu criei você tem os direitos que eu der. 

— Isso tá errado. — refutou Nina — Foi um trabalho em conjunto. Você só criou só a Lua. Iara, por exemplo, ela criou o mar. 

Nina Varell levou os braços ao alto e uma enorme parede de água se ergueu do mar, atingindo Jaci em cheio. Ela caiu, soltando Nina em seu território e enquanto a garota mergulhava Jaci se segurou com a força de sua mente. Nina se concentrou e ergueu as mãos mais uma vez e águas a rodearam como uma pequena bátega, possibilitando que ficasse sobre o mar para equivaler-se à combatente furiosa. As ondas no alto mar se agitaram um pouco mais. 

— Esta noite é o fim de nossa maldição, Iara! — Jaci exclamou com um alvo brilho envolvendo seu corpo. 

— Não achei essa atitude educada. — zombou Nina. 

A deusa rugiu e abriu os braços com um brilho branco que parecia o luar, porém ainda mais intensificado. Nina evitou olhar aquilo e esquivou-se usando a tromba d'água. Com as duas mãos apontadas contra Jaci, ela fez todo o oceano se mover para frente e para cima como um soco gigantesco. Uma muralha de água com grandes entradas escuras e assustadoras. Jaci não se deixou amedrontar. Montou uma barreira mental e todo o pesado volume de água foi para direita ou esquerda, caindo atrás dela.   

Nina não sabia mais o que fazer. Era tudo o que conseguia imaginar até aqui. Além disso, a raiva que canalizara passou. A tromba d'água desceu e Nina ficou rente a superfície. Seus pés apareceram de novo e a cauda se soltou como uma casca velha, virando água em seguida. Agora, nadar aqui se tornou difícil. O mar revolto e a tempestade que se aproximava do horizonte escuro do pélago impediam que uma pessoa comum conseguisse se mover. Era frio. Nina submergiu e foi levada para várias direções. Nem Jaci a conseguia encontrar. Ela não tinha tragado oxigênio suficiente, pois a pouco a própria água lhe era para respiração. Por um segundo, ela viu a lâmina d'água, se mexendo acima com a força de mil homens. E foi o medo que fez a cauda aparecer novamente. Seu corpo se transformou e ela pôde respirar. 

Quando estabilizada, porém, permitiu que Jaci a encontrasse. A deusa usou seus poderes para trazê-la mais uma vez para fora do mar. A chuva chegou às duas. Nina tentou usar a cauda para atingir Jaci, mas movê-la como um chicote não era tão fácil como podia parecer. A Grande Lua jogou uma gargalhada perversa. 

— Você pretende me bater com a cauda? — gargalhou outra vez. 

— Pra você ver... — Nina não se deixava abalar. 

Jaci sorria, encharcando seu brilho eterno com as gotas que caíam do céu. Nina não sabia o que a deusa faria com ela, mas de repente o sorriso sombrio desapareceu enquanto Jaci ultrapassou o contato visual para olhar a praia. 

— O que? — disse a deusa. 

Nina Varell olhou para trás. A orla deserta era apenas uma linha quase invisível daqui. Pequeninas bolas amarelas se acendiam e depois apagavam. E a poucos quilômetros dela uma ave gigante com penas de ouro voava para lá. Parecia haver alguém montada naquele ser místico. Nina se encantou com a beleza do animal. Quase não conseguia parar de olhar. 

— Yorixiriamori. — Jaci disse descrente, aparentando saber exatamente quais os desejos da criatura mitológica. 

— 'Yo' o quê? — Nina perguntou, mas não obteve resposta. Em vez disso, foi solta na água pela deusa que pareceu ter assuntos mais importantes a tratar. Jaci saiu planando o mais rápido que podia até a praia. Ao tocar a água, Nina nadou naquela direção também, deslizando pelo mar, ao redor das ondas furiosas. 

Prisões de Guarani - versão gratuitaOnde histórias criam vida. Descubra agora