Havia o cheiro suave de um licor conhecido. Breno Guilherme apertou os olhos e os abriu. Era escuro, mas ele teve a impressão de ouvir o vento lá fora mexer arbustos e árvores e o quebrar das ondas do mar. A lateral dolorida de sua cabeça sangrara uma cachoeira que foi até o ombro e correu por todo o braço esquerdo, mas quando acordou já havia sido sarada. Provavelmente o responsável era o contorno sentado no canto ao lado da janela, olhando para ele e deslizando sobre as mãos uma faca que refletia o luar como um espelho. Em uma bancada perto da pessoa, uma garrafa de Spirytus Stawski estava aberta, banhando o ambiente com aquele aroma que o fez despertar.
— Eu achei que você não fosse acordar. — a voz era aguda. Quase como a de uma garota. Timbre suave, mas não falava de um jeito feminino.
— Eu não sou muito de falar palavrão, — Guilherme chacoalhou a cabeça quando sentiu as mãos presas uma à outra no assento — mas que merda é essa?!
— Vingança. — o garoto ligou a lâmpada e mostrou seu rosto.A sala onde estava era o quarto de uma grande casa abandonada feita de madeira e embasada com placas de concreto. Aquela devia ser uma pequena cidade fantasma no meio do nada ou uma das casas de verão de alguém certamente menos favorecido que Mauro Nindberg ou Apolo Varell, por exemplo. O corredor que levava à sala principal tinha um carpete velho e quadros que não se podia enxergar os rostos nas paredes também de madeira. Em móveis que ali havia o estranho personagem depositara velas, como o caminho para um ritual macabro. Ele parecia esperar por esse momento há tempos. Guilherme tentou se lembrar de onde conhecia o seu caricato sequestrador. Encolheu os olhos e fez uma careta.
— Garoto, eu não sei quem é você. Me solta antes que eu fique irritado.
— Você não se lembra, não é?
Guilherme olhou novamente. A mancha no rosto, ele a viu em algum lugar...
— Ah, droga! Eu me lembro de você. — disse com desdém — Você era o motoqueiro que caiu na estrada e ficou assistindo a minha surra. Olha, eu imaginei que isso fosse acontecer um dia... Não adianta me dissecar; isso é mágico, está bem?
— Cale a boca. — o menino ordenou, perfurando a mesa de madeira com a faca e tirou uma pistola das costas, colocando-a no rosto de Guilherme.
— Ei, ei.
— Eu só queria saber se te dá prazer.
— Do que você tá falando, exatamente?
— Você sabe do que eu tô falando, Guilherme. Você mata garotas inocentes. Mas agora o seu dia chegou, desgraçado.
Guilherme entendeu. Era Kelly, assombrando-o mais uma vez.
— Você está falando da Jaqueline Antunes.
— Sentiu prazer em destruir minha família, seu assassino?
— Você não entende, garoto... — ele não conseguiu continuar antes de levar uma coronhada.— Eu não sou um "garoto", idiota. Meu nome é Jonas Antunes. Eu sou irmão da garota que você matou e enterrou numa cova rasa na estrada. Você não faz a mínima ideia do que eu passei pra estar aqui hoje. É por isso que existe uma decoração com velas e algo pra beber no final.
Com o bico da arma, Jonas ergueu novamente a cabeça de Guilherme e ele fez contato visual com o sequestrador que finalmente mostrou-se ameaçador. Com seu olhar quase satisfeito envolvido pela mancha que nunca mais seria esquecida, Jonas Antunes continuou a discursar:
— E nesta noite me agradeça, porque você vai morrer da forma mais épica que eu consegui imaginar.
— Se você resolvesse me ouvir, Jonas, — Guilherme cuspiu, mas não desceu sangue — perceberia o quanto está enganado sobre mim.
— Eu não viajei naquela moto até meu traseiro doer pra dialogar com você.
Jonas apontou a arma para ele. Guilherme pensou sobre onde ele havia conseguido a pistola. Esse rapazinho parecia mais integrante de um grupo de xadrez e matemática do que alguém que pratica tiro ao alvo. Certamente, o irmão de Kelly era inteligente: ao olhar para o lado, Guilherme viu uma grande estrutura de metal rodeada de cobre e ligada a um fio descascado que saía pela janela até alcançar o chão de barro da rua. Jonas havia construído uma espécie de para-raios, para impedir que ele o atingisse.
— Gostou da ideia? — o garoto perguntou com perversidade e informou inutilmente — fiz especialmente pra você. É um para-raios improvisado. Você não vai me matar também, Guilherme.
— Por que você não cala essa boca e atira logo em mim?
Jonas simplesmente deu de ombros, apontou a arma para a coxa esquerda de seu alvo e disparou. A dor indizível percorreu cada parte dele. Guilherme gritou. Queria segurar a perna que lançara sangue ao alto, mas suas mãos estavam presas.
— Quer mais um tiro?
— Você é um psicopata! — Saliva se esticava a partir dos lábios inferiores de Guilherme, que estava encurvado sobre si mesmo. A dor não parava. Jonas Antunes sorriu.
— Você é o psicopata. Não confunda as coisas aqui. Eu sou apenas um vingador.
Enfurecido, Guilherme gritou para Jonas como um urso em seu território e um relâmpago saiu de sua boca, mas fez uma curva em direção ao para-raios. Jonas se assustou e recuou alguns passos.
— Uau! — ele comemorou ofegante — Que bom que aquilo realmente funciona.
A dor era constante, mas diminuiu. Guilherme se concentrou em olhar para seu inimigo.
"Tomara que não seja problema", ele se lembrou de quando disse isso. "Eu sou um idiota".
— Tudo bem, eu vou parar de brincar com você. — Jonas pegou a garrafa e acenou com ela para Guilherme — Spirytus. Noventa e seis por cento de álcool. Minha irmã bebia de vez em quando, mas eu nunca tive coragem porque dizem que é como tomar um soco no estômago tão forte que você fica com dificuldade de respirar. — ele olhou a garrafa novamente — Mas a Kelly, ela gostava mesmo desse cheiro suave que disfarçava a potência que esse licor tem. Ela era exatamente assim: um cheiro suave e agradável, mas o conteúdo de alguém forte, inteligente, poderosa.
Guilherme não disse nada enquanto Jonas pensava em silêncio. O garoto continuou:
— Hoje, é a Kelly quem vai te matar, Guilherme.
Jonas bebeu um gole do licor e trancou os olhos com o ardor severo, abrindo a boca pra puxar oxigênio. Depois, apertou o interruptor, desligando a luz e saiu derramando o resto do conteúdo pelo quarto e o corredor até a saída.
— Jonas! — Guilherme gritava repetidas vezes — Jonas!
Ele voltou. Mas em vez de falar com Guilherme mais uma vez, parou no meio do quarto e abriu os braços, como em um desenho anatômico. Em sua mão, havia um isqueiro. Jonas caminhou para trás, soltou o objeto aceso e se virou para ir ao corredor.
— Não! — Guilherme exclamou.
Quando o isqueiro tocou o chão molhado de licor uma chama veloz se expandiu pelo quarto, tomando as cortinas da janela e, então, parte do teto. Rapidamente uma grande região do quarto estava em chamas e o calor começou a incomodar Guilherme. Jonas passou pelo corredor derrubando as velas que ali havia sobre o carpete velho, que levava à sala.
— Jonas! — Guilherme gritou mais uma vez, mas agora seu coração estava irado como fica o coração dos deuses. O relâmpago que mais uma vez saiu por entre seus lábios tornou a luz do fogo pequena e uma penumbra azulada a dominou por um instante. A maior parte do raio se curvou novamente em direção à estrutura de cobre e a destruiu. Uma parcela pequena de seu poder atingiu as costas de Jonas e percorreu em um segundo todo corpo dele. O rapaz caiu, gritando e chacoalhando pelo chão como um peixe. Enquanto isso, línguas de fogo alaranjadas tomavam conta da casa à beira-mar, saindo pelas janelas e atingindo cada setor com sua dança incansável.
Guilherme tentava se soltar das boas amarras que o garoto desequilibrado havia feito. Com pequenos raios deslizando em seus dedos, ele tentava romper as cordas, mas em vão. Vendo isso, começou a pular com o intuito de folgar os nós e, desequilibrando, caiu à lateral com a cadeira.
— Droga!
Tentou se erguer e caminhar, mas a coxa doía toda vez que a usava. O fogo naquela madeira começou a encher o ambiente de fumaça, expulsando o oxigênio dali. Guilherme quis adormecer em meio às chamas. Esforçou-se para erguer o corpo amarrado ao peso da cadeira, mas precisava de outra estratégia. O sono veio outra vez, oscilando por enquanto.
— Não durma. — ele ordenou a si mesmo — Você precisa sair daqui.
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Prisões de Guarani - versão gratuita
Fantasy🏆Terceiro lugar no concurso PAX 🏆Prêmio de melhor vilão (Deusa Jaci) A vida pouco comum de Maya Nindberg, herdeira de um verdadeiro império e com os sonhos na palma da mão, passa a ser ameaçada por forças super-humanas ao descobrir que sua falecid...