15. Teçá

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Das cinzas ainda quentes que sobraram do ataque que o consumiu, o guerreiro yanomami retornou da morte. Seu corpo machucado pelo fogo se curou completamente, mas não a sua alma. Ele retornava sempre em grande luto por mais um dos cinquenta homens que lhe confiaram a vida e as forças no "Ritual da Esperança". Cada vez que Teçá se lesiona ou morre, algum homem de sua aldeia tem que pagar por isso. E visto os ataques fatais que seu corpo já sofreu nas batalhas anteriores e nesta mesma corrente, o defensor da honra yanomami imaginava que ainda restariam talvez mais dez chances de libertar ao menos um de seus deuses.

"Somente um", ele pensava, "um deus seria suficiente", mas as prisões estão agora numa condição tão diferente que mesmo a força do maior guerreiro não as pode destruir. As grades que contém as divindades são auto defensoras, afinal, se o horror e a ira são os malditos gatilhos das forças sobrenaturais, Teçá não pode ser mais forte que um desses jovens, para que não o temam, nem mais fraco do que eles, para que não se confiem em seu ódio. Ele tentou ser furtivo, mas isso também não serviu. O que poderia fazer, se não pode agir como guerreiro, nem como caçador, nem mesmo como um covarde?

— Inútil. — ele insultou a si mesmo, olhando para as mãos regeneradas, mas deixado ao chão como um inseto pisoteado.

Pegou a lâmina que deveria libertar seus mandantes eternos e divas potentes de corpos invasores e levou aquele objeto luminoso à frente de si.

Andurá, a Árvore Fantástica — evocou —, não é mais momento de se inflamar por causa da derrota, mas por causa de uma batalha a ser vencida.

A lâmina se soltou da mão do indígena e se afastou por si mesma pelo ar. Teçá só a assistia flutuar, imaginando o que Andurá estaria fazendo. Pensou que talvez tivesse irritado a árvore divina e seria destruído agora mesmo junto com sua missão. Dos deuses, Andurá era a que nunca falava, então não se podia saber exatamente o que estava pretendendo. Mas ele pensou que se a divindade em forma de árvore chorosa faria algo, ela não seria tão estupida para destruí-lo.

A lâmina se iluminou um pouco mais, e seu brilho foi tomando conta do cenário de destruição, com o carro de Guilherme destruído à direita e buracos no chão que provocariam acidentes logo mais. Teçá se ergueu e continuou assistindo. A adaga deixou que saíssem raízes de seu cabo, que tocaram o chão asfaltado e o penetraram rapidamente e a partir do asfalto um fogo foi subindo pelas raízes sem as consumir até chegar à arma. Era o fogo de Andurá, que se expandiu em uma chama vivaz como a de uma fogueira quando o centro daquela visão fascinante se formou.

Os olhos escuros de Teçá refletiam o amarelo das chamas enquanto seus pensamentos eram de contrição. Ele estava sendo visitado pessoalmente por um ser divino. Seu corpo não se movia e ele nem parecia respirar. Quão feliz ficaria sua filha, que já devia estar tão diferente depois desses anos! Teçá olhou para o fogo e esperou para saber o que Andurá lhe traria. Será que conseguiriam se comunicar mesmo ele não sendo um pajé?

"Quarto ano", Teçá ouviu uma voz feminina com potencial de espetáculo introduzida em sua mente, "este é o quarto ano de missão, guerreiro".

— Ugh... — ele gaguejou mantendo os olhos fixos nas chamas — A-ndu-rá.

"Sim, Andurá", o fogo contava, "Há milhares de anos, minha função na existência era denunciar a Tupã a destruição que assola o coração de Pindorama, que é a mata. Os homens deste mundo não podem ficar à própria sorte, pois sem a tutela de deuses, Pindorama e qualquer outra terra é destinada à ruína e à escuridão. Há quatro anos, mudando meu destino, entreguei-me ao auxílio de tua tribo para lutarmos contra essa ruína iminente, mas hoje o que era uma grande aldeia está por seu próprio esforço desaparecendo, ao confiar tão solene batalha às mãos de um homem apenas".

— Perdoe-me. — Teçá implorou como que hipnotizado.

"Tu tens derramado sangue. Tenho visto o esforço. Mas bem soube e sei que nunca seria suficiente".

— Há solução, minha senhora?

"Entregar parte de mim para que pudesses destruir as Prisões de Guarani foi a atitude insuficiente. Tua força, porém, não é. És forte, guerreiro. És insistente. Por isso, não terás mais parte de mim para findar esta maldição, mas terás tudo de mim. Terás Andurá em sua essência".

Sem que Teçá tivesse tempo de pensar sobre tudo aquilo, a lâmina em chamas explodiu e o fogo, junto com os milhares de pequenos pedaços brilhantes foram em direção a ele, atravessando seu corpo pelo peito e pelas costas várias e várias vezes. Teçá gritava enquanto aquela atividade sobrenatural – insondável a princípio – era realizada por Andurá.

Mas ele entendeu depois. A energia e os pequenos pedaços da faca estavam entrando em seu corpo e ficando lá. Aquele brilho diminuía ao passo que o círculo de idas e voltas ia diminuindo também. E quando tudo acabou, o silêncio e a escuridão vieram de mãos dadas. A luz da lua era a única luz mais uma vez e Teçá inspirou como alguém que sai da água quando prestes a se afogar.

Ele sentiu seus membros como a maior arma que já possuiu. Tinha ainda mais energia, ainda mais força. Seu corpo não seria subjugado ao fogo de Angra, já que Andurá, uma árvore de fogo, era seu escudo. E além, assim como a Árvore Fantástica, ele poderia estar em todos os lugares e saber de todas as coisas em cada área verde do Reino de Pindorama.

O guerreiro respirou fundo e foi até o carro da prisão de Tupã. Para testar sua nova força, Teçá pegou aquele automóvel e o ergueu do chão com uma mão apenas. O esforço foi mínimo, como um homem normal ergueria seu filho. O metal do carro rangeu e quando o lutador yanomami percebeu que a estrutura estava se partindo, pôs no chão novamente.

Ele estava pronto. Caminhou até a beira da estrada e pisou a terra fértil que era agora seu veículo mais eficiente. Assim que seus dois pés tocaram o barro, Teçá entrou no chão como alguém que entra na água. Era escuro por um segundo, mas então ele emergiu exatamente onde queria: o alto de um penhasco naquela mesma floresta. Viu que ao longe, na estrada, caminhões já se aproximavam daquele carro destruído e homens saíam deles com suas lanternas, checando se havia corpos ou algum sobrevivente.

— Não a desapontarei, Andurá. — ele sussurrou em sábia harmonia com os ventos do mar.

Prisões de Guarani - versão gratuitaOnde histórias criam vida. Descubra agora