22. Nina

8 2 0
                                    

Nina não acreditava no que seus olhos mostravam para ela. 

Ergueu a mão novamente e mais uma vez a água do copo na mesa de MDF à sua frente se ergueu, subindo numa forma ondulada e esguia como uma serpente de cristal transparente. Quando ela esticou os dedos, o líquido parou de desafiar a gravidade e retornou ao copo sem deixar que uma única gota caísse fora, a não ser aquelas oriundas da transpiração do recipiente. Nina Varell engoliu em seco e chacoalhou a mão como Isabelle costuma fazer. Num momento, ela se lembrou da amiga. Sentiu saudade. No outro, o medo do desconhecido a dominou. 

— O que está acontecendo comigo? — disse antes de notar que a água chacoalhava também. 

— Olá. — um homem de meia idade vestindo o uniforme de policial civil entrou na sala de interrogatório e fechou a porta. Tinha em suas mãos um documento. Era algum tipo de boletim. 

— Olá. — Nina respondeu preocupada com o que ele podia ter visto há pouco. 

Ele gemeu enquanto se sentava do outro lado da mesa e colocou o documento à sua frente. Puxou do bolso uma caneta. Sua cabeça calva refletia a luz branca do alto. Olhou para ela e a mediu discretamente com os olhos enrugados até onde pôde. 

— Qual é seu nome? — perguntou. 

— Nina, senhor. 

— Nome, — ele redisse, assinando alguma coisa num documento que havia na mesa — não apelido. E completo. 

— Esse é meu nome: Nina Marcela Varell. 

— Nina, é? — o policial deu de ombros com uma sobrancelha erguida — Tudo bem.
Nina encolheu os olhos. "Eu não vou me dar bem com ele", pensou. 

— Idade? 

— Dezoito. 

— Com esse sotaque gostosinho, é mineira, não é? 

— Sim. — ela já estava de face dura. 

— Faz o quê da vida? 

— Sou estudante. 

Ele anotou. 

— Pode contar sua história triste, Nininha. 

— Se puder me chamar pelo meu nome, eu agradeço. — ela laçou um falso sorriso de ironia. 

— Você fica ainda mais bonitinha exigindo seus direitos de prisioneira. 

— Eu não sou prisioneira. — ela olhou seu reflexo na mesa, opaco e distorcido. Infelizmente, ainda dava para ver o quanto seu cabelo havia ficado bagunçado. Podia não ser muito para os outros, que a viam bonita de qualquer jeito, mas para ela aquilo era a pior das fatalidades. 

— Ainda, não. — disse o interrogador. 

— Mas eu não fiz nada! — Ela bateu com a palma da mão a região bem ao lado do copo, que jogou um pouco de sua água sobre a MDF plana. O policial bateu na mesa com mais força e o líquido saltou ainda mais. O som grave e encorpado encontrou as paredes e retornou para o centro alto como a buzina de um caminhão. Nina juntou seu braço ao corpo automaticamente, recolhendo-se com medo. 

— Isso sou eu quem vai dizer. — ele impôs calmamente, depois de um cruel silêncio. 

— Não é justo. — resmungou Nina — Maya e eu não somos criminosas. 

— Só vocês duas? Breno Guilherme, então, é criminoso em sua opinião? 

— O que?! 

— Foi o que você disse. 

— De jeito nenhum! Ele... Eu nem conheço ele. 

— E como encontrou o garoto no meio do nada? Vocês sabiam que Breno Guilherme dos Santos é suspeito de assassinato? 

O rosto de Nina Varell pendeu. 

— Como assim? 

— Ele te disse algo a respeito?

— Bem, se por algum motivo ele fez isso, eu creio que ele nunca me diria. 

— Certo. — Mais uma vez, o policial anotou no boletim. Em seu rosto havia desdém — De onde conhece a mendiga? 

— Mendiga?! — Nina gargalhou — A Maya não é uma mendiga. 

— Sem documentos, sem roupas decentes...

— É uma longa história, policial — ela o refutou com a mão erguida —, mas aquela lá é Maya Moema Nindberg e ela mora comigo e mais uma garota no condomínio Jandira. Ela está longe de ser uma mendiga. É literalmente filha de um imperador! 

— Então, riquinha — o policial ficou impaciente sem motivo e se ergueu sobre a mesa, escurecendo o espaço de Nina —, me explique exatamente o que estavam fazendo na fábrica de cereais e porque destruíram tudo. 

— Eu não sei exatamente o que houve. — ela gaguejou com medo — estávamos só passeando por ali. 

— Passeando no meio do nada? E a fábrica explodiu sozinha. Boom! — Ele abriu as mãos e afastou os braços do tronco para interpretar a explosão — Espera realmente que eu acredite nisso? 

— Eu... — Nina sentiu a boca seca. Lambeu os lábios — Eu não sei o que houve. Eu juro! 

Ele se sentou novamente, negando com a cabeça e mergulhado em tédio. 

— Os piores interrogatórios são aqueles que você não sente um pingo de dúvida, filha. Quer ver? Você disse que mora no Jandira, né? 

— S-sim. 

— E isso é verdade, não é? 

— É sim! — ela respondeu firmemente. 

— Eu tenho certeza que é. Mas me responda: o que você e Maya estavam fazendo numa estrada deserta a dezenove quilômetros de casa, debaixo do sol mais ardente do dia e com um garoto desconhecido e uma menina em um estado tão crítico de saúde? 

Toda a estrutura de Nina estremeceu. Não havia sentido em qualquer resposta diferente da verdade, mas também não havia sentido no que realmente aconteceu. E esses fatos não poderiam se tornar conhecidos. Ela se lembrou do rosto de Amin em seus últimos momentos. Os assombrados olhos azuis rodeados do loiro cabelo à frente deles. Ele estava olhando para ela naquele momento. A deusa que havia em seu interior parecia irada como qualquer outro predador aprisionado. Quase dava para contemplá-la por entre aqueles olhos. 

Ele sabia de um jeito. Fez o que devia e podia fazer. Amin Roriz enviou Iara para Nina, através do que chamava de Abrigo: Maya Nindberg. Através de seu olhar, Amin também passou a mensagem de que não era aquilo que ele queria. Ele não queria transferir o maior motivo de sua dor para mais alguém, ainda mais Nina Varell. Porém o fez, e precisava fazer para impedir a libertação da deusa das águas. Nina não podia estragar isso. Por seu esforço, a morte de um herói não será vã. 

Por outro lado, não era boa em mentir. O policial já estava impaciente com os longos momentos de silêncio. Nina sabia que não iria convencê-lo de nada. 

— Eu estou esperando sua resposta, senhorita Varell. 

— Eu... — ela gaguejou. Ficou em silêncio. Tentou abrir a boca para contar alguma meia-verdade, mas o celular do interrogador tocou. 

— Se me der licença... — ele atendeu — Oi. — Nina viu a fisionomia do agente mudar — Sério? Cortes por lâmina? Meu Deus! Pode mandar a foto. 

Nina ainda não entendeu o que estava acontecendo. O interrogador olhou para ela. 

— Ugh... — ela gemeu, aguardando alguma novidade. Ele recebeu a foto em sua tela de toque, olhou por alguns segundos e então mostrou para ela. Era Amin Roriz, um pouco mais escuro do que quando o deixaram aos pés de Teçá. Ele havia sido queimado pelas explosões. Os reflexos de Nina a fizeram fechar seus olhos, mas ainda assim a imagem cavalgou em sua mente em direção às memórias de longo prazo. Nina chorou, deixando que lágrimas banhassem o MDF polido da mesa. O interrogador se aproximou dela. 

— Acho que algo a mais caiu na sua conta. Você me garante mesmo que acabou de conhecer o Guilherme?

Prisões de Guarani - versão gratuitaOnde histórias criam vida. Descubra agora