Epílogo

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Nil dormia imóvel como um boneco do outro lado da cama confortável. Acordada ao seu lado, Maya Nindberg ainda avaliava severamente se o que tinha feito era errado. Olhou para o rapaz seminu ao seu lado e se virou para o teto novamente. O relógio do celular marcava duas da madrugada. Saiu da cama. Belle roncava baixinho, deitada sobre os livros numa posição que parecia um terrível acidente. Maya fechou a porta do quarto da amiga. O quarto de Nina estava fechado e silencioso. Ela o abriu para verificar. Nina Varell dormia tranquilamente, virada para a janela em sua grande cama de casal.

Maya foi até a cozinha. Tudo estava escuro, mas ela podia ver claramente. Não pensou sobre isso. Abriu a geladeira e o ar frio saiu seguido de uma fumaça branca. Ela pegou uma garrafa de água, encheu o copo e bebeu. Subitamente, sentiu a mente toda esfriar e doer. Bebeu mais um pouco e voltou para a cama. Nil ainda estava lá, na mesma posição. Seus pulmões empurravam as costas para cima e recuavam em seguida. Maya se deitou e decidiu que tinha que relaxar. Assim o fez.

Em pouco tempo depois disso, o sono chegou. A visão clara da noite foi-se tornando escura e Maya se sentiu feliz por finalmente estar descansando, após vários dias acompanhados do luto, traumas, frustração, o desejo de vingança e a falta de sono. Ela bocejou, fechou os olhos e finalmente tudo escureceu.



Maya abriu os olhos, e estava de pé num belo bosque iluminado pelo luar. O horizonte era escuro para todos os lados, mas por algum motivo ela não tinha medo. As árvores escurecidas eram saudáveis e corujas observavam a graciosa iluminação da lua cheia. Macacos se penduravam pela cauda longa nos galhos fortificados. Ela caminhou por aquele espaço, não sendo perseguida por animal algum. Eles apenas brincavam entre si e pareciam sorrir. Cada pedaço daquele ambiente era agradável ao ser.

No alto de um penedo cheio de grama verde como os olhos de Maria Ester e flores que brilhavam como mechas encantadas do cabelo de uma fada, uma mulher de pele azulada e cabelos enegrecidos e tão longos que quase tocavam o chão segurava um bastão de madeira que se encurvava na ponta superior, formando um desenho de lua. Seu corpo tinha tatuagens brilhosas que pareciam indígenas e as curvas musculosas de cada parte dele tinham um aspecto de eternidade.

— Jaci. — Maya soube. A deusa se virou. Sua fisionomia era muito diferente da de Maria Ester. A Deusa da Lua tinha uma feição indígena. Seu cabelo era ainda mais liso e tinha uma franja na frente. Suas cobertas eram metais e cristais que estavam apenas nos seios e no meio das pernas, para que as tatuagens que denunciavam seu poder ficassem à mostra.

A verdadeira Jaci era ainda mais bela e elegante, mas encheu o coração de Maya pelo medo quando seu rosto se fechou em uma feição de caçadora e o bastão se iluminou, jogando um raio de luz contra ela. O raio, porém, atravessou Maya e destruiu uma das árvores, jogando-a ao chão. De imediato, a árvore retornou ao seu local, intacta. Maya entendeu que estavam em planos diferentes e aquela noite não podia passar de uma conversa. Ficou tranquilizada.

— O que está acontecendo? — Jaci perguntou — Onde eu estou?

— Nós a derrotamos. — Maya se aproximou dela — Está dentro de mim.

Diante da mulher divina, viu que ela era maior que um ser humano.

Jaci entendeu espavorida:

— Então esta é a condição do abrigo?

— "Condição do abrigo"?

— Sim, Ugh... — Jaci pôs a mão na cabeça, confusa — Quando um deus é abrigado ao invés de estar numa prisão ele dorme, mas existe uma condição para que permaneça assim e o Abrigo de Garani precisa aceitá-la. Abrigar Tupã traria a condição de desconfortos em dias muito ensolarados e noites sem tempestade.

Maya se lembrou dos incômodos que tinha ao entrar na água e de como os últimos dias foram livres disso. O desconforto provavelmente era a condição de ter Angra abrigada em si. Sendo assim, visitar Jaci para lembrá-la de sua pena devia ser a nova condição do Abrigo de Guarani. Maya ergueu a sobrancelha.

— Entendo. — refletiu — É lua cheia lá fora. Faz sentido.

— O que você fez?! — Jaci vociferou, brilhando com sua luz amedrontadora. Maya permaneceu firme, sabendo que não podia ser atingida.

— Eu dei a você o descanso que merece.

— Eu ordeno que me liberte, Abrigo de Guarani. Eu não posso viver uma mentira.

— Já deu trabalho demais te colocar aqui. — Maya sorriu sadicamente.

— Eu sou uma deusa! — Jaci cresceu, ficando realmente gigante sobre a face daquele plano de grama verde. Sua voz ficou dupla e ecoante e ventos sopraram do norte. Maya continuava imóvel.

— Não, você é só o monstro cósmico que fez um satélite natural.

Jaci caiu sobre ela como o bote de uma serpente. Seu grito ecoou por cada parte daquele reino mental. O cenário todo se destruiu, jogando poeira ao alto. A Deusa Lua se levantou e esperou a poeira se dissipar. Quando aconteceu, o penhasco era exatamente como estava antes de ser destruído. E Maya estava lá. Jaci gritou, sabendo que a Maldição das Prisões de Guarani não permitiria que destruísse mais nada. Maya olhou para o alto.

— Não se sinta mal, Jaci. A vida é como uma cidade que, como todas as outras, precisa de vias de mão dupla. Sendo assim, vamos compartilhar nosso sonho a cada lua cheia. Vamos nos encontrar e eu vou te contar como cada um de nós está seguindo suas vidas com a felicidade que nunca nenhum deus guarani terá.

— Não! — Jaci rosnou.

— Até. — Maya se virou e saiu. Jaci gritava e lançava raios de luz em sua direção, mas por mais que a destruição resultante acontecesse a cada passo de Maya, ela não era atingida. A deusa repetiu os ataques até o momento em que Maya finalmente desapareceu no escuro do bosque.



Maya acordou. O sol entrava pela janela, batendo em seu rosto com o calor de uma manhã sadia. Nil não estava mais lá. Devia ter sido ele quem abriu a janela e a deixou assim, sem notar que isso atrapalharia o sono dela. Bocejou e esticou os membros, ainda coberta. Estava descansada de uma maneira como não conseguiu estar a certo tempo. E ainda que sem a vingança, ainda enfrentando o luto, ainda que seu corpo estivesse lutando com a dor, para orgulho de seu pai, Maya se sentia viva, esta manhã.

— Oi. — Nina apareceu na porta. Isabelle estava com ela, com sua típica expressão de preocupação. Porém, Nina também estava assim.

— Ah, oi! — Maya se pôs sentada. Ela sabia o porquê desse tom apreensivo. Resolveu poupá-las de perguntas inúteis.

— Um... Tal.. De Nil, ele tomou café da manhã e acabou de sair. — Belle jogou o dedão para trás, tendo dificuldade de escolher as palavras.

— Hum.

— Ele disse que você não se preocupasse, que vocês vão se ver logo. — Nina cruzou os braços e ergueu a sobrancelha.

— Não me preocupo com isso. — Maya gargalhou falsamente, mas sabia que não conseguiria enganá-las. Um silêncio tomou o quarto iluminado. Maya olhou para seu leito confortável, agora séria e com um pouco de arrependimento.

— Quer falar sobre isso? — enfim, Belle perguntou.

— Não se preocupem. — Maya assegurou, mantendo o olhar no edredom. Suspirou.

— Você é forte, senhorita Nindberg. — Belle disse — Sempre foi.

Maya olhou para elas. Não eram apenas três amigas, e ela sempre soube disso. Foi assim que encontrou a chave para vencer seu luto definitivamente. Ela se lembrou que ainda tinha família.

— Tá pronta pra voltar pra vida? — Nina chacoalhou o jaleco em suas mãos.

Maya deu um sorriso fechado:

— Com toda certeza.

Prisões de Guarani - versão gratuitaOnde histórias criam vida. Descubra agora