35. Guilherme

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— O que acha? — Guilherme perguntou, ao apontar para Ester a grandiosidade da cidade de São Paulo. As grandes ruas divididas em oito mãos tinham veículos correndo em mais alta velocidade do que Escobar conduzia o seu.

— Quase dá pra ver o cinza metálico do oxigênio. — Ester brincou.

— Qual é! — Guilherme gargalhou.

— Mais uma hora e chegaremos lá. — informou Escobar.

— Já faz tanto tempo. — Guilherme sorria — Quase tudo prece diferente.

— Pra mim, filho, tem o mesmo significado: aprisionamento.

— Dá pra notar.

— Só pra saber: o tal índio que destruiu minha casa não vai voltar atrás de vocês, vai?

— Parece que não.

— Eu não sei como o senhor não ficou aborrecido. — Ester invadiu a conversa.

— Apesar de parecer um fujão, na verdade eu sou um cara de muita resiliência, mocinha. — ele passou a falar mais seriamente daqui — Além disso, eu sou pai.

Guilherme olhou para Escobar, que sorria fechado. Ester deu de ombros.

— Vê se decora nessa última hora de viagem: meu nome é Ester.

— Tá, tá. — Escobar jogou os olhos para cima — E por falar em você, aquela coisa fantasmagórica tem chance de voltar?

— Ela é problema de outra pessoa, agora.

— Bem, parece que nós estamos indo super bem, não é?

Guilherme recordou que aquela porta de madeira brilhante costumava ser aberta por sua mãe. Ele sentiu pela feição de seu pai que ele pensava o mesmo. Mas agora isso não ia acontecer. E a maçaneta foi puxada para dentro, na direção do desejo de Vana, que arregalou os olhos rodeados da pele branca recheada de espinhas vermelhas. A porta ficou entreaberta por um momento.

— Gui? — ela olhou à direita de Guilherme e abriu completamente a porta — Tio Escobar? — olhou o meio dos dois, onde estava Ester — O que está acontecendo aqui? Guilherme, você tem uma porrada de coisa pra esclarecer.

— Sei que tenho. — Guilherme a abraçou — É bom te ver, sua pirralha chata.

Vanessa apenas retribuiu o afeto. Ester deu um sorriso tristonho, apoiando seus cabelos loiros na orelha corada. Escobar se recostou na parede ao lado e assistiu sorridente. Mais parentes apareceram com perguntas e alegrias, acolhendo os três, apesar de existir uma pequena indiferença a Escobar.

Houve um jantar e Guilherme e Ester contaram suas histórias de vida e como se conheceram, mas poupando-lhes dos detalhes mais absurdos. A morte de Jaqueline Antunes se tornou um pequeno engano da polícia baiana, a cicatriz em seu pescoço se converteu em parte de um acidente que o fez perder o carro completamente e o encontro com Ester virou uma casualidade romântica e inocente numa praia do litoral nordeste. Ele não se sentiu confortável com isso, mas viu que Ester e Escobar estavam satisfeitos. Não tinha porque estragar isso.

Escobar passou a noite em casa, e na manhã seguinte Guilherme o viu tomar café antes que todos acordassem e pegar a mochila.

— Está indo embora? — perguntou. Escobar o viu agora.

— Por favor, não fique chateado comigo, filho. — Escobar pediu, arrumando a mochila sem parar para conversar — Depois de sua mãe eu não me sinto mais como um "homem da casa". E você, meu filho, é um homem feito. Pode se casar com aquela loirinha estranha e ser feliz com sua casa, filhos, um cachorro pug e uma sala de aula pra ensinar Historia. Eu não vou me sentir eu mesmo, aqui.

— Eu não estou chateado. — Guilherme respondeu, fazendo seu pai finalmente parar e olhar para ele — Hoje, eu entendo você, pai.

A cena se congelou como uma foto. O frescor do orvalho do jardim anterior, com a porta de rolo aberta ao lado deles, entrava encaixilhado pelo formato da passagem. Escobar sorriu e uma lágrima rolou sobre seu rosto, escondendo-se na barba. Guilherme soube que fez seu pai se sentir finalmente aceito.

— Tudo bem. — Escobar fungou e esfregou o nariz — Eu... Eu já vou andando. Diga aos outros que vou passar por aqui de vez em quando.

— Vai? — Guilherme perguntou animado.

— Sim. — seu pai fez contato visual.

Ele fez um sorriso verdadeiro e consentiu com a cabeça. Nenhum abraço, mas esse entrave pareceu não importar. Escobar Borges pegou a bolsa e caminhou pelo corredor que levava à porta da frente. Ao abri-la e sentir a ventania gelada dessa época em São Paulo, olhou para seu filho mais uma vez. Os dois retribuíram sorrisos novamente e o pai caminhou até seu veículo, deixando Guilherme a vê-lo partir da porta da frente. Guilherme havia planejado leva-lo até o cemitério, mas tinha certeza que Escobar estava fazendo isso para fugir, também.

Mais tarde, no campo grande e verde que transmitia descanso e também amargor, Guilherme se ajoelhou sobre a placa de pedra cinzenta que possuía uma foto do rosto sorridente de Cândida Borges Santos. Ele acariciou esse único rosto de mãe que podia, agora. Quase sentiu tocar os cabelos negros dos quais herdou os seus, o fino nariz, os olhos abaixo dos óculos. Quase a sentiu respirar.

Guilherme finalmente depositou a última lágrima que guardou daquela manhã, que chorou como criança por não poder estar aqui. O epitáfio mostrava que Cândida tinha seus segredos, pois certamente havia sido planejado. Estava perfeito.

Mulher relâmpago: brilhou enquanto esteve aqui, mas se foi rápido demais.

— Pensávamos no que colocar no epitáfio — Vanessa, atrás dele, explicou — quando eu encontrei uma carta dela pra você. Eu li, me desculpa, Gui.

Guilherme ficou preocupado, mas resolveu não dizer nada e deixa-la continuar:

— Você me mostra tudo, então... Enfim. A carta falava de coisas estranhas envolvendo seres míticos. Não sei se ela estava querendo dizer alguma coisa pra você em código ou se estava alucinando por causa da doença e não quis nos dizer. Mas eu descobri duas coisas.

Ele se voltou para ela.

— A primeira — Vana continuou — é que a tia Candinha sabia que estava doente e escolheu não nos contar. E a segunda é que ela planejou seu epitáfio — Vana soltou uma risada melancólica — um epitáfio nem um pouquinho humilde, né?

Guilherme ficou tranquilo, agora.

— Nem um pouco — ele riu também. Se levantou e ergueu o braço para que a prima se encaixasse no abraço lateral.

— Como ela está vestida? — Guilherme perguntou.

— Com aquele vestido que ela gostava, aquele violeta com botões e mangas bufantes.

— Sim, eu lembro desse. — ele disse sorrindo. Vana inclinou sua cabeça no peito de seu primo e ele colocou o queixo sobre ela enquanto olhavam o rosto de Cândida naquela pedra onde ficaria para sempre. À distância, Ester os olhava abaixo de uma árvore. As batalhas que Guilherme viveu na primeira semana de luto mostraram que ele estava pronto para uma nova fase. Pronto para ser a próxima prisão da linhagem. De sua mãe, herdou a força para erguer o peito frente aos monstros cósmicos pobres de caráter. Estará sempre pronto.

Prisões de Guarani - versão gratuitaOnde histórias criam vida. Descubra agora