O som de um riacho cantante tirou Ester de um longo e estranho sono. Enquanto seus olhos se abriam devagar, ela contemplava a vaga imagem da luz do sol refletindo na água corrente. Estava deitada à beira daquela constante que levava a um lago onde uma pequena comunidade de pescadores se agrupava. Ela não viu direito se havia pessoas tão ao longe, mas o cheiro, já sentido àquela distância, falava por si.
Maria Ester se levantou daquela areia cinza e fétida e limpou o lado do rosto com as pequenas mãos. Sua roupa nova estava tão suja quanto a primeira. O cabelo dourado tinha sido massacrado pela longa madrugada. Parecia que estava de novo na estaca zero, sem ninguém e à companhia desagradável de Jaci, que agora tomaria conta de sua mente todas as noites. Ester gostava da lua cheia, e há muito não mais a viu. Agora, nem mesmo a vista de uma simples noite seria possível para ela.
Ela se perguntava o que teria feito Jaci toda essa noite. Tudo o que lembrava eram pequeninos trechos da noite passada, como os raios de Guilherme vindo em sua direção ou o corpo do Teçá sendo destruído pelas chamas de uma poderosa silhueta que felizmente salvou seu amigo no mais oportuno segundo. A memória mais clara era de quando planava no alto e caía sobre os braços de Guilherme, mas aí apagou novamente. Outros vultos foram vistos, mas não conseguiu entender bem. Parecia um grupo de pessoas correndo para todos os lados, gritos, choros... um monte de coisas aleatórias e devastadoras.
Ester olhou para a vila à beira do lago. O riacho a conduziria até lá. A essa hora da manhã, ela imaginou que aquela cidadezinha de mercadores deveria estar um pouco mais movimentada. Os homens normalmente estão à beira do lago para pescar já na madrugada, pois pela manhã deveriam levar os seres da água para comercializá-los na cidade mais próxima. Lembrar disso até lhe deu fome.
Ela começou a caminhar até lá, cuidadosa por causa das coisas pontiagudas que se escondiam na areia abaixo de seus pés; estava descalça. Ao se fechar, a mata a obrigou a caminhar pela água do riacho, que a manhã cinzenta tornou tão gélida. Algumas pedras no caminho da correnteza faziam a água fria respingar na menina, que resmungava por isso enquanto abraçava a si mesma.
A ventania fez seu corpo estremecer e os poros da pele branca se porem de pé, mas depois de talvez dez minutos ela conseguiu chegar à vizinhança. Descobriu nesse mesmo momento que preferia não ter vindo até aqui.
— Meu Deus! — exclamou Ester, enquanto caminhava em meio ao montante de corpos, destroços e fumaça. Havia homens, mulheres, crianças e animais, todos mortos ou nas ultimas agonias.
Ester não conseguia erguer o queixo enquanto observava todos aqueles mortos. Partes gigantescas das casas daquela vila haviam sido arrancadas para esmagar famílias que desejavam fugir. Ela viu uma pequena locanda escurecida por chamas que ainda consumiam alguma coisa. Um cãozinho sobrevivente a essa catástrofe latia e uivava tentando reanimar um homem caído que já não tinha mais vida. Cavalos, jumentos e outros animais tinham sido abertos a partir das costelas, como se seus próprios ossos houvessem renunciado a função de protege-los.
O verde claro de turmalina dos olhos da prisão de Jaci vibrou na presença de lágrimas de um luto por pessoas que nem conheceu, pois ao olhar para o teto da casa à sua frente, no fim da rua, viu duas meninas e um menino pendurados por ganchos. Ester pôs a mão à frente da boca e caiu de joelhos olhando sem parar para aqueles pequenos.
"Foi você", ela pensava. Pranteou de angustia e ira contra a deusa; tal ira que sobreveio sobre ela mesma. Num grito que lançava ao redor toda a dor que sentia, Maria Ester expandiu um campo mental que destruiu o barro do chão e as casas metros em redor. Seu cabelo tornou-se azulado e as tatuagens de Jaci apareceram, junto com uma iluminação que embranqueceu seus olhos. Ela contemplou as luzes pintadas em sua pele agora meio-azul e viu como era quando aquela deusa malfeitora dominava seu ser. Que forma horrível era aquela!
VOCÊ ESTÁ LENDO
Prisões de Guarani - versão gratuita
Fantasy🏆Terceiro lugar no concurso PAX 🏆Prêmio de melhor vilão (Deusa Jaci) A vida pouco comum de Maya Nindberg, herdeira de um verdadeiro império e com os sonhos na palma da mão, passa a ser ameaçada por forças super-humanas ao descobrir que sua falecid...