20. Ayira

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A luz do céu era cinzenta e a paisagem fosca como uma velha foto. Iluminados por uma meia luz deprimente que penetrava entre as copas de árvores quase estáticas, pacus inquietados deslizavam pela água cristalina de um rio sossegado. Num momento, uma lança de pesca caiu sobre um daqueles peixes, prendendo-o ao chão subaquático dissipado pelo impacto preciso. Sangue e amargura saíram do corpo em choque daquela vida que entrava em colapso.   

À distância, na margem, Ayira constatava seu êxito na pesca individual.   

— Eu acertei. — murmurou, como se anunciasse para alguém atrás de si. 

Não era a mesma menininha que seu pai havia deixado em casa anos antes para partir numa jornada em busca de uma salvação sem sentido. Por outro lado, era praticamente uma mulher feita, com seus dezessete anos. Usava penas brancas e acinzentadas de harpia amarradas a quatro tranças compridas e finas que existiam por entre seus cabelos negros. A pele nem tão negra nem tão branca era ornamentada por listras vermelhas que cobriam todo o seu corpo comprido. No rosto, elas terminavam como três linhas mais finas e escuras que pareciam bigodes de gato. Os seios haviam ficado grandes e arredondados. A cintura adquirira sua forma chamativa. 

Os olhos, no entanto, tinham a escuridão de um passado sangrento. Um passado traumatizante. Sua feição era como a de um soldado ao voltar para casa após uma violenta guerra. Ayira não lembrava a ultima vez que esticou os finos lábios para, verdadeiramente, sorrir. Havia, sim, sorrisos, mas ela pensava muito no fato de não serem genuínos.   

Ayira não falava muito e enquanto a comunidade – ou o que restara dela – pescava em união, à maneira tradicional, ela vinha a este mesmo lugar para executar a mesma caçada que seu pai lhe ensinou há quatro anos. Sentia de todo o coração que estava melhor sozinha, especialmente porque a qualquer momento, na batalha de Teçá, ele morreria mais uma vez, levando consigo um dos rapazes da vila. 

Antes de vir para a caça Ayira ouviu do ultimo homem: destroçado do nada como se houvesse explodido. Ainda bem que não estava lá para ver o que os outros viram.   

Ela também pensava em Toriba, que era a próxima vida doada a Teçá. Pensava em como o pobre coitado devia estar se sentindo.   

Apanhou o pacu inerte e o tirou da lança para colocar numa sacola impermeável feita de couro de javali. Quando se virou para a margem ouviu um farfalhar de arbustos ali. Seus olhos se acenderam e Ayira começou a pensar. Podiam ser os malditos garimpeiros, que lentamente vêm poluindo seu rio memorável ao mergulharem seus pertences sujos aqui. Ela não podia mergulhar, visto que a correnteza era ainda muito transparente e rasa. 

"Não serei estuprada viva", ela ordenou a si mesma posicionando sua lança para o ataque, "e muito menos entregue às mãos deles! ".   

Ayira estava prestes a disparar sua munição quando do meio das árvores surgiu Mauá.
Não desde a saída de Teçá, mas desde sempre Ayira tinha problemas em se relacionar intimamente com as outras pessoas. Isso se tornou pior quando toda a jornada de seu pai começou, mas não impediu que a jovem índia conhecesse um moço valente que construísse ao seu lado um futuro saudável. Não era um relacionamento que a ajudaria com sua comunidade, dado que Mauá era de outra tribo, além das montanhas. Isso não era algo que Ayira escolhera; não havia sobrado homens mais jovens em casa. 

O corpo de seu amante era coberto de vestimentas parecidas com as dos homens brancos que trabalhavam na garimpa e praticavam o mal com seu povo. A tribo do rapaz havia aceitado uma conexão maior com homens bons de terras distantes, não com garimpeiros e soldados, mas ainda assim isso incomodava Ayira. 

Seu nome, Lucas Mauá, fonética estranha, incomodava ainda um pouco mais.   

Mauá, entretanto, não esquecia que a "civilização" pregada era na verdade relativa – assim como Ayira o ensinou – e que eles eram também civilizados, a seu modo. Por isso, Mauá não insistia que ela deixasse certos costumes, como a seminudez. 

Prisões de Guarani - versão gratuitaOnde histórias criam vida. Descubra agora