A queda das folhas marca o início do outono. A estação que deixa tudo cinza e sem vida. Sentada no peitoral da janela, observo o sol partir e dar lugar à vigília lunar.
Mais um dia. Menos um dia.
Essa é minha rotina, sempre fora desde que me recordo. Nada de diferente acontece. Todos dizem que o diferente é errado, perigoso. Entretanto, nunca me senti de outra forma. Sempre fui a deslocada, rebelde, a que não se encaixava.
No mundo em que vivo, não se encaixar é igual a não sobreviver. Por isso, finjo. Finjo seguir as regras, finjo ser um cordeiro obediente que segue para o matadouro sem questionar o motivo de sua morte.
Há mais tempo do que me é permitido saber, a guerra tem tragado jovens como eu. Nunca questionamos. Apenas aprendemos a atirar antes dos doze anos. Muitos ainda nem atingiram a puberdade e já sabem derrubar um alvo em movimento. Mas quem seria louco o bastante para não se sentir honrado em lutar pelo reino de Pélagus? Bem, quando minha professora de história fez essa pergunta, levantei a mão. E assim, fiquei sem jantar por uma semana.
Desde a formação de Pélagus, a guerra contra o Reino Sombrio havia tirado muito mais vidas do meu povo do que era possível contar. E no dia seguinte, eu seria recrutada para servir ao exército pelaguiano. Lutar uma guerra que nunca foi minha.
De acordo com meus registros, eu completaria 20 anos assim que os primeiros raios de sol despontassem na próxima manhã. A idade da Convocação. Todos os anos, no início do outono, o rei fazia um discurso patético falando sobre a importância de lutarmos por nosso reino. Para minha infelicidade, isso aconteceria justamente na data do meu suposto aniversário.
Você deve estar se perguntando: como alguém supõe o dia de seu próprio nascimento? Pois bem, tenho sua resposta: sou órfã. Aos três anos de idade fui abandonada em um orfanato na pequena cidade de Marina Azul ao sul de Pélagus. Não há registro sobre meus pais. Não há escriturações para indicar quem eu deveria ser.
Minha estadia no orfanato não foi das mais agradáveis. As cuidadoras nunca me consideraram uma criança adorável. Pelo contrário, quando atingi dez anos e um soldado bateu à porta da velha instituição com o intuito de levar os órfãos aptos para se tornarem combatentes, fui a primeira da lista. Todos os anos eles vinham. Sabia que minha vez iria chegar e chegou.
A tradição no reino consistia no encaminhamento de todos os órfãos ao exército. O rei julgava isso um ato de misericórdia e uma estratégia eficaz para "não nos tornamos vagabundos". Pelo menos isso era o que dizia o coronel Carter, a única pessoa a quem eu dedicava meu real respeito.
Quando cheguei ao pequeno complexo do exército de nossa cidade, ele se encarregou de me instruir. Ser muito mais rígido e exigir muito mais de mim do que dos outros, poderia ter despertado em mim ódio ao invés de admiração por sua pessoa, mas ele sempre me tratou de igual para igual e isso era algo incomum para pessoas como eu.
Por causa dele, abortei meu plano de fuga da Convocação. Iria lutar e voltar viva para mostrar a ele que sua dedicação não fora em vão. Mesmo não conhecendo alguém que tenha alcançado tal proeza.
Talvez você esteja pensando que o ódio que venho alimentando por meu reino seja sem motivo. Bom, precisa saber de algumas coisinhas sobre o maravilhoso reino de Pélagus: o povo é dividido entre os Elementais e os Mestiços (já se supõe pela denominação a qual lado pertenço, não é?). Os elementais supostamente descendem das Fadas e dos Lupinos. As Fadas são as guardiãs de nosso mundo e os Lupinos são os seres por elas criados a partir dos lobos para guardarem as florestas, dizem que são homens com lobos habitando dentro de si e, se quiserem, podem se transformar nessa fera.
No entanto, com o passar dos anos, Fadas e Lupinos se apaixonaram um pelo outro e o resultado foi os elementais. Eles reúnem a força e bravura de um lobo com um dos poderes das Fadas: água, fogo, terra ou ar. Os quatro elementos que geram a vida. Pelo menos é isso que nos contam e o que está registrado nos livros dados às escolas.
Os elementais eram devotos aos seus progenitores, entretanto, eles almejaram o controle do mundo depois de algum tempo. Tornaram-se maiores em número do que os demais povos e criaram o reino de Pélagus.
Há boatos de que no início havia domadores dos quatro elementos. A magia desenvolvida por eles era tão forte, que Fadas e Lupinos decidiram deixar que construíssem seu próprio mundo. Uma ideia particularmente irritante porque a genética mágica foi se dissolvendo de geração para geração, tornando os "dons" cada vez mais incomuns e gerando os mestiços como eu. Também somos chamados de profanos por alguns.
Sacerdotes elementais dizem que nossa existência zomba de nossos progenitores e que somos destinados a servir. Sendo assim, morremos em batalhas que não são nossas, limpamos palácios que não sujamos, cozinhamos comidas que não nos alimentam.
Nosso rei, descendente e controlador da antiga dinastia do fogo, diz que eles foram gerados para comandar, assim como fomos criados para obedecer. Só de pensar nisso, sinto uma raiva inflando cada pedaço do meu ser. Se encontrasse um Lupino ou uma Fada, avisaria a eles que sua criação tem devastado o mundo ao invés de protegê-lo.
-Ei, você está nessa janela há horas, não vai se preparar para o jantar?
A suave voz de Juliette, minha colega de quarto, traz-me de volta à realidade. A noite havia chegado e eu nem notara. O frio outonal já invade o pequeno alojamento através da abertura da janela. Foco os olhos nela antes de formular uma resposta.
-Não estou com fome. Pode pegar a minha porção se quiser.
-Ok. Mas você deveria comer, amanhã será um longo dia, Scarlett. -Com isso, ela me dá as costas e sai do quarto, deixando-me encarando a porta fechada.
Juliette é o oposto de mim. Ela é baixinha e eu alta, ela tem muitas curvas e meu corpo sempre foi magro e modesto, ela ostenta olhos verdes e cabelo loiro e liso e eu tenho uma mistura de castanho com ruivo cheio de cachos indomáveis e olhos âmbares. Nunca fomos amigas de verdade, apenas nos toleramos pela convivência inevitável. Ela ainda tem dois anos até sua Convocação.
Fecho a janela e deito na cama do meu lado do quarto. Praticamente cresci naquele quartel. Só a ideia de ser mandada para longe revira meu estômago, indicando que a ideia de abdicar do jantar foi certeira. Por mais que tenha sofrido nesse lugar, ele é o único lar que conheci e o mais próximo de família que possuí.
O sono começa a pesar minhas pálpebras e deixo lendas e histórias antigas se infiltrarem em minha mente, evitando pensar no que o amanhã trará. Sou embalada em um sonho com dentes afiados e asas batendo.
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