Acordo sentindo um aperto em meu antebraço. Aos poucos, a imagem do interior do carro da realeza se torna mais nítida aos meus olhos nublados pelo sono. Havia adormecido e nem imaginava por quanto tempo.
Quando minha visão volta ao normal, reparo que a mão do príncipe repousa em meu joelho. Fixo meus olhos aos dele para tentar compreender sua atitude e me sinto presa instantaneamente. A constatação de que ele também está inclinado em minha direção é ainda mais desconcertante.
O ar se torna mais espesso e difícil de respirar. Permaneço imóvel, pois um pequeno movimento e o momento estaria quebrado. Ele exala e percebo que sua respiração está irregular e o azul de seus olhos parece mais acinzentado e escuro. Todavia, mais rápido do que meu cérebro paralisado consegue acompanhar, ele se afasta.
Liberta de seu olhar e do calor de sua mão, só posso imaginar o quão inadequada ele acredita que eu seja. Ainda mais por não conseguir deixar de encará-lo de maneira tão explícita.
-Não queria acordá-la. Você parecia tão tranquila. Porém, temos que ir para o navio. –Diz, quebrando o silêncio. Ele não olha para mim, ao invés disso, fita a paisagem.
Ao recuperar a lucidez, percebo que não estamos mais em movimento. Pouco a pouco, suas palavras adentram minha mente lenta e entorpecida pela sua presença.
Ele havia me olhado enquanto eu dormia? E qual a finalidade do raio de um navio?
-Nós estamos no mesmo espaço minúsculo, Scarlett, é um pouco difícil ter mais a ser visto. E precisamos de um raio de navio para chegar mais rápido à capital. –O príncipe responde às minhas conjecturas.
Com as bochechas enrubescidas, constato que pensei em voz alta. Vergonha se infiltra em minhas veias e fecho minha boca. Acredito que jamais havia sentido tanto constrangimento em minha vida.
Felizmente, o príncipe não volta mais seu olhar para mim. Dessa maneira, fica mais fácil manter os pensamentos coerentes. Olhando pela janela, vejo que o anoitecer já se pronuncia e que estamos estacionados no porto na costa da cidade vizinha à Marina Azul, Puerto Del Amor Eterno.
Apreensão faz meu estômago se contorcer por jamais ter pisado em um navio e por preferir que meus pés fiquem em terra firme. A simples imagem das ondas quebrando contra a proa acelera meus batimentos cardíacos e faz minha barriga emitir um som tão alto e constrangedor que preenche o ambiente.
-Você deve estar com fome, não comeu nada o dia todo. Tome isso. –Ele estende um pacote com o título "bolo de chocolate com cobertura de creme".
-Não estou com fome. –Recuso com um aceno de cabeça, embora sinta completamente o contrário.
No quartel, nunca tivemos abundância de alimentos. Assim como em todas as outras cidades nas quais a população de mestiços era superior a de elementais, lá tudo era racionado. Sobremesa era um luxo ao qual não dispúnhamos. Jamais havia provado nada assim, apenas açúcar puro.
O príncipe me encara com a embalagem ainda estendida. Meu estômago continuando querendo conversar com o mundo e isso o instiga levantar uma sobrancelha. Resignada, tomo a embalagem de sua mão e quando a abro, admiro a beleza culinária feita por alguém. O bolo é pequeno, mas cheio de círculos e espirais desenhados sobre sua superfície com creme branco.
Ao dar a primeira mordida, sou tomada por um tipo novo de prazer. O sabor é muito melhor do que a aparência. Fechando os olhos, esqueço de tudo ao meu redor e me entrego a sensação. Comer com certeza é uma arte.
-Você parece que descobriu os segredos das fadas. –Diz o príncipe e sua voz transborda humor.
Levantando minhas pálpebras novamente, encontro-o me olhando com expectativa. Sem dúvida, ele desconhece a sensação de sentir fome, frio ou medo. Sempre teve um porto seguro em seu quartel, sua coroa, seu reino e em sua família. Antes de formular uma resposta, dou-me tempo para terminar de mastigar e absorver as milhas que separam nossas realidades.