Uma pequena cabeleira castanha adentra meu quarto deixando a porta escancarada. Com um pulo, Davi se senta em minha cama e me encara com seus grandes e inteligentes olhos também castanhos. Sinto o coração desacelerar e meus pulmões voltarem a trabalhar.
-Eu queria saber se o seu castigo já "tá" acabado pra "brinca" comigo. –Ele diz em expectativa.
Jamais soubera interagir com crianças na vida, principalmente pelo fato de que minha infância fora roubada para dar lugar a treinos e lições de combate. Porém, não estava realmente sendo obrigada a permanecer no quarto e a ideia de que o príncipe apareceria ali a qualquer momento não me agradava. Além disso, aquele pequeno ser demonstrava tanta expectativa em minha resposta que fez meu coração ceder.
-Para sua sorte, não estou mais de castigo. Mas nós teremos que brincar em algum lugar bem longe do príncipe, ele ainda está zangado. Você topa? –Digo.
-SIM! –Ele grita e abre um enorme sorriso.
Antes que eu perceba, estou sendo arrastada para fora do quarto. A despeito de suas pequenas pernas, Davi corre rápido e tenho que me esforçar para acompanhá-lo. Descemos cada vez mais lances de escadas até chegar em andares em que eu ainda não havia ido.
Empregados circulam e nos lançam olhares desconfiados. A felicidade de Davi é tão contagiante, que me deixo levar e distribuo sorrisos aos estranhos também. Ele me conta sobre suas grandes aventuras vividas no convés do navio enquanto nos embrenhamos mais e mais interior no interior da lata flutuante.
Os corredores parecem mais estreitos, as paredes perdem sua suntuosidade de quadros e vasos de ouro. Chegamos a um corredor que me lembra muito ao dormitório do quartel, simples e limpo, indicando que a realeza não faz mais parte daquela ala do navio.
Davi para em frente a uma porta no meio do corredor e entra. Meus olhos aos poucos se ajustaram melhor a parca iluminação e posso distinguir os objetos a nossa volta: havia uma beliche, um pequeno armário e uma cômoda; simplório exatamente como se espera que seja. Havia também uma caixa no canto do quarto que, para minha surpresa, estava repleta de brinquedos. Bolas, bonecos, jogos de tabuleiro e muitos outros, quase como um ato de rebeldia colorida contra a opressão cinza que nos rodeava.
Sentando-nos no chão, começamos a brincar com tudo que Davi tinha vontade. Não me recordava de outra vez em que eu havia rido tanto na presença de outra pessoa. Sua inocência e pureza me encantam. Antes de cada brincadeira nova, ele questionava se aquilo me agradaria. Sem nem mesmo hesitar, aceito tudo que é proposto.
De tempos em tempos, noto que ele faz algumas perguntas sobre mim: minha família, de onde eu havia vindo, como era o lugar em que nascera. Sua curiosidade despropositada é cativante. O interesse das pessoas geralmente carrega segundas intenções, mas as crianças se dão livremente sem esperar algo em troca.
Com a proximidade do horário do almoço, Davi decide trazer nossa comida para o quarto. Agilmente ele entra e sai da cozinha sem ser descoberto, enquanto eu espero no quarto. Contudo, sendo a criança que é, nossa refeição é recheada de doces e chocolates que deveriam fazer parte da sobremesa.
-A gente deveria "come" só torta de chocolate. Aquelas gosmas verdes que a Suzi me obriga a comer são nojentas. –Ele diz fazendo uma careta.
-Eu concordo. –Falo.
Ele abre um enorme sorriso e continua a preencher nossa conversa sem nenhuma dificuldade. Só reparo quanto tempo se passou ao olhar pela pequena janela e notar o céu enegrecido. Começo a me levantar para ir embora, porém Davi me interrompe.
-Você pode "lê" uma história pra mim? Ainda não sei juntar todas as letrinhas. –Ele pede com olhos esperançosos.
Hesito por alguns instantes. Esse menino com certeza está se insinuando para dentro do meu coração e isso é um perigo. Contudo, o carinho que transborda da sua expressão me persuade a correr o risco de permitir que esse pequeno menino de grandes e brilhantes olhos castanhos resida em meu peito.