Capítulo 2

36.6K 3.4K 2K
                                    

Aquela voz. Sempre a mesma voz.

Acordo com o coração batendo forte e suor escorrendo pelas têmporas. Ainda consigo ouvir o som de uma risada em minha mente. Por alguns segundos, acreditei que era real.

O mesmo sonho me assombra desde criança. Nele, estou em algum lugar parecido com uma praça arborizada. Tudo é colorido pelas flores. Há uma pérgula no centro em forma de asas de borboleta. Tento chegar a ela, mas ainda não tenho habilidades motoras coordenadas com as pernas.

Com a minha tentativa desengonçada de andar, ouço um riso. O som é como água gelada no verão. Tão maravilhoso que se deseja nunca deixar de escutar. Então, acordo e tudo some. Não sonhava com isso há algum tempo.

Olhando pela janela, noto que o sol começa a despontar no horizonte em seu nascer preguiçoso. O pensamento de que esse será o último dia em que verei o amanhecer por essa janela, é desconcertante.

Minha mala já está pronta, esperando por mim ao lado da porta. Não demorará muito e Juliette já terá um novo colega de quarto. A rotatividade nunca para em nosso quartel. Mas ainda tenho um último pertence para resgatar, a única parte que mantenho de meu passado desconhecido que estava comigo quando cheguei ao orfanato.

Certificando-me de que Juliette está dormindo, vou até uma madeira solta no assoalho do quarto embaixo da minha cama. Abaixo dela, há uma pequena caixa e nela minha única herança: um lenço branco com um bordado de folhas verdes e pequenas borboletas vermelhas. Além disso, há uma sentença gravada nele "A liberdade está no sangue, meu próprio sangue, nosso sangue. Um dia, ele trará você de volta pra mim".

Quando criança, acreditava que isso era um recado de meus pais, que eles iriam me buscar algum dia. Contudo, isso jamais aconteceu. Continuei vivendo solitária, mesmo nunca estando sozinha.

Guardo o lenço no bolso. Ele é o único elo com meu passado e mesmo não significando nada, não consigo me desfazer dele.

Alguns minutos depois, estou pronta para partir. Dirijo-me para o refeitório, ainda que esteja sem fome. Como um bom soldado, sei que tenho que me alimentar. O lugar está praticamente vazio. Apenas algumas pessoas comem em silêncio.

Ainda está cedo e tenho três horas até o pronunciamento do rei e da minha partida. Sento-me em uma mesa afastada e como devagar, apreciando a brisa leve que entra pela janela e memorizando a visão que ela dá para o pátio de treinamento. Distraída, sobressaio-me quando alguém senta ao meu lado.

-Acordou cedo. Ainda faltam três horas até o pronunciamento. -Diz o capitão Carter.

-Eu sei. Quis me certificar de que tudo estava organizado, senhor. –Respondo.

Ele me olha por alguns segundos. É um homem marcado pelo tempo, seus cabelos já mostram manchas brancas e seu rosto as linhas deixadas pela vida. Ainda assim, carrega consigo uma áurea de respeito e força.

-Eu sei o quanto esse dia é difícil, Scarlett. Todos nós sabemos que quando vocês partirem, a probabilidade de voltarem é quase nula e isso é um peso grande demais para se carregar. Às vezes a vida nos coloca em caminhos estranhos, mas no fim tudo é explicado. Acredite no que está aqui. -Ele toca em meu peito, onde supostamente está meu coração, olha-me por mais alguns segundos e sai.

Fico embasbacada por um tempo por causa do seu comportamento inusitado. Uma lição que o capitão me ensinou é ser forte como uma rocha e jamais deixar o que sinto transparecer.

Esqueça a dor. Esqueça a fome. Esqueça o medo.

Foi isso que aprendi naquele lugar. Qualquer tipo de demonstração sentimental é a atitude mais bizarra que ele poderia ter.

Coroa De Fogo - Livro 1 - Trilogia MestiçosOnde histórias criam vida. Descubra agora