Sinto em meu rosto os primeiros raios de sol. Abrindo os olhos vagarosamente, percebo que os trabalhadores já estão iniciando o seu trabalho no convés sem se importar com a minha presença. Meu corpo reclama quando me mexo por ter dormido em um local inadequado, mas ignoro a dor. Aquilo havia me trazido o mínimo de paz.
Olhando ao redor, espanto-me pela paisagem que me rodeia: flores de todas as cores e formas. A cidade pela qual estamos passando é como um enorme jardim; o ápice da primavera. Para onde quer que eu volte meu olhar, tudo é adornado com cor e vida. As casas são lindas construções delicadas. Fico maravilhada com cada detalhe que consigo enxergar.
-Scarlett! Finalmente te encontrei! –Exclama Suzi as minhas costas.
-Eu estava aqui o tempo todo. –Respondo sem muita emoção.
Não me volto em sua direção, por isso ela puxa meu braço até que nossos olhos se encontrem. Suzi tem um olhar penetrante e questionador.
-Por que você não dormiu em seu quarto? – Pergunta.
-Não tive vontade. Não me encaixo a esse lugar, Suzi. Nem sei se consigo tentar. –Digo.
A imagem das crianças famintas volta a minha mente e uma lágrima traidora escorre em meu rosto. Suzi é mais rápida do que eu e a enxuga com sua mão. Ela me puxa para seus braços e me aconchego sem resistência. Ver a morte escancarada e depois a vida esplendorosa, produz sérias feridas em meu coração.
-Você vai encontrar seu caminho, minha criança. Não fui lhe procurar ontem para que pudesse se acalmar, mas não quero que se esconda dessa forma de novo. Eu fiquei preocupada quando não a encontrei. –Ela diz.
-Desculpe. –Falo fungando e sem saber como reagir a sua ternura explícita.
-Bem, não estou aqui para lhe dar um sermão. Vim para lhe avisar que vamos fazer uma parada no porto de Amarante. –Ela aponta para a cidade florida a nossa frente. –Se você assim desejar, poderá nos acompanhar. –Diz Suzi com um largo sorriso.
-Nós vamos sair do navio? –Exclamo um pouco mais alto.
-Vamos, porém você terá que seguir as regras com rigor. Não foi fácil convencer o príncipe a liberá-la para sair. –Ela diz.
-Faço o que for preciso para sair dessa lata flutuante. –Digo com agitação.
Suzi solta um longo riso e nos encaminhamos ao "meu quarto". Ela me faz tomar banho e comer. Além disso, sou obrigada a colocar um vestido rosa claro que chega as minhas panturrilhas e sapatos de boneca. Segundo ela, preciso manter uma aparência nobre para as pessoas não questionarem minha presença no navio real, pelo menos não até tudo ser esclarecido ao rei. Rumores podem ser muito perigosos.
Aceito mesmo a contragosto, já que a dor que os calçados causam aos meus pés não se iguala a expectativa de pisar em solo firme novamente. Para não correr riscos, escondo a pedra negra do meu colar sob o decote reto do vestido, deixando apenas o cordão à mostra.
Suzi faz uma longa trança em meus cabelos para domar os cachos e, enquanto trabalha, discorre sobre como deverei me comportar: nada de falar desrespeitosamente com qualquer pessoa, tratar a todos com muita educação, não sumir de sua vista em hipótese alguma... No meio do discurso, paro de ouvi-la porque a lista é muito longa.
Quando Suzi termina, olho-me no espelho e tenho dificuldade em encontrar a pessoa que realmente sou. Ela parece estar vestida com luxo demais.
Você não pode se perder embaixo disso, Scarlett.