Minha cabeça lateja do lado esquerdo e sinto que algo não está certo. Não ouso mexer nem um centímetro porque sinto que não estou sozinha. Com a ponta dos dedos da mão, sinto o local onde estou deitada: é frio e liso, lembrando-me a mesa do refeitório. Somente minha cabeça está apoiada em algo macio. Aguço os ouvidos para compreender os ruídos a minha volta.
-Ela é apenas uma menina, como saberia o ritual para roubar os dons de vocês? Se é que isso existe mesmo! –É a voz do capitão Carter e exala muito mais cólera do que já presenciei.
-Não estamos acusando-a de nada no momento, capitão. Entretanto, teremos que tomar algumas providências. Nenhum elemental ascendeu após completar 13 anos. Quando isso não acontece, eles são considerados mestiços, como todos aqui. –Essa voz é desconhecida para mim, um som que mistura de desdém e autoridade. Quase uma voz velha, se é que isso é possível.
A compreensão da frase do homem desconhecido entra em minha mente e relembro os acontecimentos recentes: o menino, o fogo, os soldados no chão.
O fogo que saiu das minhas mãos.
Minha imobilidade se esvai e, rapidamente, sento-me. Péssima jogada, minha cabeça gira e caio para trás novamente.
-Opa, fique calma. Está tudo bem agora. Você só tem que se acalmar. –Mãos quentes seguram meus braços e me mantêm deitada.
Ao abrir minhas pálpebras novamente, vejo os olhos mais azuis que já havia visto na vida. Um azul tão claro quanto as águas do mar recobrindo a costa. Seu rosto está tão próximo ao meu que consigo enxergar pequenos pontos dourados distribuídos por sua íris.
-Qual o seu nome? –Ele diz e, ao som de sua voz, meu corpo se arrepia.
Não consigo responder. Seus olhos me hipnotizaram e não sei como sair do transe.
Ele sorri por conta de minha mudez repentina, o que torna a minha capacidade cognitiva ainda mais precária. Até que o feitiço se quebra por aquela voz velha e intrometida.
-Alteza, não é seguro ficar perto de alguém tão instável. Deixe que eu faça o interrogatório. –Diz o dono da desagradável voz.
Ah, não, alteza não!
Não consigo acreditar que comparei os olhos do príncipe herdeiro ao mar. O que se passa em minha mente? A pancada que levei na cabeça deve ter sido muito forte.
Desvio o olhos do príncipe para o outro homem. Ele possui feições militares: rosto marcado pelo tempo e uma arrogância nos olhos característica dos Elementais. Seus olhos demonstram todo o desagrado por estar próximo a mestiços. De repente, o transe passa e sinto aquela raiva começando a acordar de novo.
A raiva que trouxe o fogo.
-Pode tirar suas mãos de mim? –Rosno, quer dizer, digo ao príncipe.
Seu sorriso se desfaz e ele assume uma postura formal e distante tão rápido quanto colocar e tirar uma máscara. Em seguida, retira as mãos dos meus braços e dá alguns passos para trás.
-ACREDITO QUE A SENHORITA SE ESQUECEU DE COMO SE TRATA SUA ALTEZA REAL OU ESSE QUARTEL NÃO ESTÁ ENSINANDO A TRADIÇÃO REGENTE EM NOSSO REINO! –Berra o homem mais velho. Ele está tão vermelho que parece que irá explodir a qualquer momento.
-Isso não é necessário, general Locus. Ela ainda não está completamente recuperada do que aconteceu a pouco. Temos que deixá-la descansar. –Diz o príncipe. Mesmo que seu rosto demonstre indiferença, sua voz carrega um pouco de preocupação.
Ele continua me olhando fixamente, parecendo estar esperando por algo. Se é um agradecimento por ter me poupado de um sermão, é melhor se sentar enquanto espera. Levanto-me devagar dessa vez para não cair novamente e procuro pelo capitão. Encontro-o um pouco afastado da mesa que me serviu de leito observando tudo atentamente. Além disso, noto que outros soldados estão a sua volta.