A cozinha fica em um dos andares mais abaixo do navio. Descemos escadas e viramos em alguns corredores até chegar a ela. Em todo o trajeto, Suzi movimenta a cabeça em negação e bufa, mas não torna a me questionar.
Ao chegamos, espanto-me com o tamanho do lugar, é uma mistura de monstruosas máquinas para produzir comida e pessoas se alimentando e conversando muito alto. Ainda assim, tudo parece uma desordem sincronizada.
Não imaginava que haveria tantos empregados em apenas um navio. Porém, a extravagância da família real não me surpreende mais. Com alívio, noto que não há nenhum soldado entre os presentes.
-Menina, continuo acreditando que essa não é uma boa ideia. –Suzi volta a falar.
-Relaxa, Suzi. Nada de ruim vai acontecer. –Digo, esperando estar certa.
-O príncipe não vai gostar de você estar entre os empregados, ainda mais sendo a maioria deles mestiços. –Ela argumenta.
Aquilo chama minha atenção. Ninguém havia notado nossa presença na entrada da cozinha, mesmo assim, baixo o tom de voz antes de falar de novo.
-Os empregados não são todos mestiços? –Minha voz está carregada de ceticismo.
Um elemental, independe de possuir pouca magia, jamais aceitaria um cargo tão baixo na sociedade.
-Nem todos podem escolher, cara Scarlett. –Ela aponta com o queixo uma mesa afastada das demais com um pequeno grupo comendo em silêncio. –Contudo, eles mantêm distância da mesma forma. –Termina com mais um aceno de negação.
Prossigo olhando para o pequeno grupo mesmo depois que ela para de falar. Nunca cogitei que existisse qualquer elemental exercendo posições inferiores, ainda que a linhagem de alguns não fosse considerada tão importante. Todos eram supostamente significativos para a regência do reino e sua manutenção.
Entretanto, aquelas pessoas estavam me levando a pensar que talvez nem tudo o que me contaram era verdade plena. Mesmo tendo uma vida para a qual não estavam destinados, eles se destacam das demais como qualquer um de sua raça. Permaneciam exalando uma aura mágica e possuíam uma beleza natural e incomum.
Ao contrário do pequeno grupo recluso de elementais, os mestiços se espalhavam por muitas mesas rindo e comendo. Eles agiam como se realmente estivessem felizes com a vida. Como se tudo no mundo estivesse certo. Sinto um estranho sentimento de traição surgir em meu coração ao observá-los.
Ao procurar por Suzi, percebo que ela me abandonou e está conversando com as pessoas que rodeiam a maior e mais repleta mesa do lugar. Um homem alto e gorducho lhe oferece alguns bolos para provar. Por suas vestimentas e pelo toque blanche em sua cabeça, acredito que seja o cozinheiro. Ela olha para mim novamente e assinala para que eu me aproxime. A coragem que surgira anteriormente enfraquece e penso se não seria melhor ter encarado o príncipe.
-Você não queria comer com eles, por que está se escondendo agora? –Ela fala com sarcasmo.
-Não estou me escondendo. –Respondo com uma careta.
-Percebi. –Ela diz e se dirige aos outros que estão com os olhos cravados em mim. –Pessoal, essa é a Scarlet. Ela é, hum, mais ou menos como uma, é, hum, assessora do príncipe. –Ela diz, com uma expressão que me desafia a desmenti-la.
Franzindo a testa, desvio meu olhar de Suzi para eles. Percebo muita curiosidade em relação a mim, mas ninguém parece hostil. Possivelmente, perceberam que também sou uma mestiça como eles.
-É, mais ou menos isso. –Digo, recebendo um olhar atravessado de Suzi.
-E o que ela "tá" fazendo aqui? –Pergunta um pequeno menino do outro lado da mesa. Sem dúvida, ele não possuía idade para trabalhar ali.