Às vezes as linhas do destinos não se conectam como planejamos. Fazemos pactos com o tempo para alcançarmos tudo com o que sonhamos, barganhamos por aquilo que parece preencher o vazio pulsante em nosso ser, mas o preço cobrado no final da jornada pode ser alto demais.
Minha mente vaga pelas memórias de um pequeno e frio orfanato, logo depois vai a um quartel lotado de crianças famintas e chega a um palácio enorme e sombrio. Entre tantas possibilidades, a vida havia me escolhido para carregar uma maldição e uma benção. A maldição da semelhança com os Elementais e a benção de poder ajudar ao meu povo a alcançar a liberdade.
Algo me diz que aquilo estava escrito para mim, não era apenas coincidência ou o resultado de uma sequência de escolhas erradas. Jamais havia me encaixado em lugar nenhum, era a parte desconexa de tudo o que me faziam participar. Estou predestinada a doar minha força por aqueles que não podem lutar e, agora, consigo compreender isso perfeitamente.
Em meio aos meus devaneios, passos se assomam ao redor das celas em que Luke e eu estamos. Um grupo de soldados adentra nossa prisão, armados até os dentes. Eles nos algemam com grilhões impregnados com o mesmo encanto de anulação das grades, diminuindo a força do meu poder.
Os guardas nos conduzem por um corredor sinuoso, sem muita gentileza. Passamos por portões com sentinelas que nos analisam como cobaias de um experimento. Depois de algumas subidas e voltas, chegamos ao interior do palácio. Aquela área está na penumbra e vazia. Ao que parece, ninguém gostaria de cruzar com prisioneiros indesejáveis.
Aos poucos, janelas vão surgindo em nosso caminho e posso ver e sentir a luz do sol, talvez pela última vez. Quando chegamos a área social do primeiro andar, noto um comportamento incomum entre os empregados: por onde passamos, eles param, acenam e nos acompanham com o olhar. É como se estivessem tentando nos assegurar de que não estamos sozinhos.
A grande porta dupla que protege a sala do trono entra no meu campo de visão e um frio percorre minha espinha. Nesse momento, somente um pedaço de madeira e alguns soldados me separam da minha sentença. Depois de alguns minutos, nossa entrada é autorizada.
A intensa iluminação prejudica minha visão brevemente enquanto adentramos pelo portal e, imediatamente, constato que não estou preparada para o que me aguarda naquele lugar: uma imensa plateia margeia o trono real, um transmissor enorme ocupa uma das paredes, fios e aparelhagens estão espalhados em cada espaço do chão ao teto, ou seja, o rei pretende fazer do meu julgamento um entretenimento para seus súditos.
Pelas vestimentas e joias que adornam a todos os presentes, concluí que cada um deles faz parte da nobreza e eu serei o "bobo da corte" literalmente. Apenas olhares de desdém e nojo são direcionados a nós enquanto cruzamos o salão. Com minhas roupas rasgadas e sujas, sinto-me ainda mais inadequada.
Sem dúvidas, jamais farei parte disso!
Esse sentimento de inadequação me traz grande conforto ao invés de insegurança. Eu não sou como eles, pelo contrário, sou uma pessoa muito melhor, mesmo que minhas roupas estejam rasgadas, minhas unhas lascadas e meus ancestrais não sejam nobres. Com isso em mente, levanto meu rosto e encaro a cada um devolvendo o ódio que estou recebendo.
Aproximando-nos do trono, meus olhos encontram duas órbitas negras como a noite e maldosas como o pior dos demônios. O rei Arthur mantém sua costumeira postura de superioridade, mas posso ver por trás dessa máscara: seu desejo nunca fora ceifar minha vida, ele almeja possuir meu corpo, minha alma e, quiçá, meu coração.
Sua rainha e seus herdeiros permanecem ao seu lado, porém, não volto meu olhar para o príncipe, procuro outro par de olhos igualmente azuis, os da princesa. Cecília aparenta ter chorado por dias e perdido noites de sono. Seu cabelo está desbotado e seu rosto sem qualquer maquiagem. Além disso, percebo que sua atenção não é voltada a mim, ela encara Luke que, por sua vez, mantém sua a face voltada para o chão.