Natan me prende em uma cadeira. Sinto meus pulsos arderem pela força com que amarrou a corda para prendê-los. Mantenho minha respiração ritmada para manter o controle e a mente focada em Vicente; preciso saber onde Conrado está.
-E agora, vai fazer o que? Streap tease, vadia? –Alfineto.
-Ah, Emmily... Não me tire do sério! Você vai se arrepender.
Se eu disser que tenho algo em mente estarei mentindo. Não sei o que fazer ou como reagir. Mas eu preciso saber o real motivo para tudo isso.
-Natan, seja sincero, vai. Esse papel ridículo que você tem se prezado a passar não começou depois do acidente. Você sempre odiou Conrado, assume!
-Isso eu assumo com muito prazer!
-E por quê? –Grito.
Ele me olha, agacha à minha frente e fica em silêncio apenas me observando.
-Acho que não temos mais o que perder aqui, não é mesmo? Devo abrir o jogo?
-Você criou toda essa merda já. Para quê ficar fazendo mistério agora?
-Tem razão... Eu odeio Conrado, sempre odiei. Sabe como é ficar atrás da sombra de alguém o tempo todo, Emmilyzinha? Aposto que não. Pais bem sucedidos, bonita, inteligente, típica família tradicional de classe média alta dentro de casa; o que é sofrimento quando se tem uma vida dessas? Eu sabia bem o que era sofrimento quando minha mãe saiu de casa porque não suportava mais o meu pai alcoólatra e me deixou com ele porque não tinha condições de me levar junto; sabia bem como era esconder a realidade da vida para não passar vergonha diante das pessoas porque elas são cruéis com quem tem pouco.
Ele se levanta e volta a caminhar pela sala.
-Já passou fome? Ah! Que pergunta a minha... –Ele dá um leve tapa em sua própria testa. –É óbvio que não. Eu já, sabe? Incontáveis vezes. Mas por favor, não tenha pena de mim. Na verdade esse é outro ponto, mas esse, graças a mim, você sabe como é: o de ser coitado. As pessoas diziam “Natan? Ah, sim, sei quem é. Aquele garoto que foi abandonado pela mãe. Coitado... Fiquei sabendo que o pai dele o bate todas as noites” ou então “Natan? Meu filho brincava com ele, mas proibi fulano porque esse tipo de gente é capaz de cometer alguma loucura a qualquer momento!”. Sabe a merda que é ser coitado a sua infância inteira? –Ele grita com tanto ódio que suas veias saltam e um pouco de cuspe escapa de sua boca.
-Não...
-Pois é. Mas é nessas situações que se descobre o poder que a mentira tem. “Você tem tal coisa?” É claro que eu não tinha, mas que pecado há em uma criança desejar ter o que o amiguinho tem? Então o não foi substituído pelo “É claro que sim!”. Vicente foi o primeiro garoto que eu consegui manter perto de mim como um amigo. A família dele era feliz, bonita e me acolheu. Mas eu não queria ser visto como coitado, então idealizei a vida que eu gostaria de ter e a adotei como realidade. Isso é uma coisa muito precoce a se fazer quando se tem doze anos de idade, não acha?
Ele se senta no sofá e apoia os braços nas pernas com a cabeça baixa, como se revivesse tudo o que este me contando.
Vicente se mexe, mas rapidamente peço para que ele permaneça onde e como está. Natan está ficando submerso com a sua própria história e isso pode lhe tirar o foco; com ele achando que Vicente ainda está desacordado pode nos dar alguma chance de surpreender.
-Eu acho e sinto muito, Natan. –Minha voz é doce para que soe bem a ele e dê margem para que continue sua fala.
-Eu também, Emmily. Na adolescência eu já nem sabia mais separar o que era verdade; fingi e menti tanto que essa era a minha vida agora. De fato toda noite meu pai me batia sem nenhum motivo, apenas para extravasar o ódio que ele sentia de tudo e da vida miserável que tinha. Assim que houve o acidente eu sabia que o sentimento dele seria de alívio pela minha morte; até pensei em acabar com aquele velho, mas com algumas noites o observando percebi que o maior sofrimento seria o deixar ali sozinho se afogando sem ajuda.
-Olha, eu realmente sinto muito por tudo isso. Mas o seu sofrimento não é justificativa para tudo o que fez!
-Ah, não? Eu vou te fazer uma pergunta.
-Faça.
-Você acredita que nesse mundo pessoas já nasçam pré-destinadas a sofrer?
-Talvez. Mas existem caminhos a seguir e...
-Que caminhos, Emmily? –Ele grita comigo. –Que caminho existe para uma criança sem pais que foi trancado em uma bolha sujeito a olhar todo mundo do lado de fora seguindo exatamente esses malditos caminhos? Escolha? Esse privilégio eu nunca tive!
Fico em silêncio.
-Eu tinha inveja de Conrado e Vicente. Eu tenho! Acha que eu nunca sonhei em casar com a menina dos sonhos, ter um milhão de carros na garagem de uma casa imensa; quem sabe até ter mais de uma casa e alguns cavalos, por que não? Eu seria invencível! Conrado sempre se destacou, era mais velho, estava alguns passos à frente. Eu queria ser como ele, andar como ele, ter as mesmas roupas e oportunidades... Eu queria a garota dele.
Fico em choque e o silêncio se instala ao ponto de apenas se ouvir o tic tac do relógio.
-Impliquei muito com ele, isso é verdade. Ele foi uma válvula de escape. Meu pai tinha ódio da vida e descontava em mim que também tinha ódio na vida e descontava em Conrado. Um ciclo inevitável. Eu via como vocês se olhavam e isso... Argh! –Ele soca o sofá. –Pelo menos uma vez eu queria estar à frente de Conrado, conquistar algo tão fácil como sempre foi para pessoas como vocês. Mas, ah, Emmily... Você me esnobava. Mesmo você mantendo uma linha entre a amizade e o sentimento de amor que tinha por ele, todos sabiam no que isso iria resultar. E olha só! –Ele levanta e gira no lugar com os braços para cima mostrando a casa. –Resultou mesmo em algo.
Ele desaparece e em uma fração de segundo sinto o calor da sua respiração em minha nuca, o que me faz arrepiar.
-Eu poderia ainda ter te conquistado se não fosse aquele maldito acidente.
-Que você causou?
-NÃO! Acha mesmo que eu queria morrer? Eu poderia ser um fracassado, mas isso seria por questão de tempo.
-Sério, Natan? Há quanto tempo aquele acidente aconteceu e você continua sendo um?
-Você poderia ser minha, Emmy.
Reviro os olhos.
-Onde Alice entra nesta história?
-Ela é igual a mim. Fracassada, perdedora, sem sorte, vista como coitada por muitos... Achei que poderia ser uma boa peça nesse meu jogo. Mas quer saber? –Ele olha para Vicente. –Não adianta nada eu fazer algo com ela com esse imbecil desacordado. Eu gosto de ferir, de saber que o que eu senti a vida inteira está sendo sentido por vocês. Foi assim quando você descobriu que seus pais tinham morrido, quando Conrado perdeu Vicente e toda a sua família, quando sua irmã te deixou aqui, com a sua memória roubada... Eu sou um ótimo artista!
-E o que pretende fazer agora?
Ele praticamente cola sua face à minha e dá um sorriso malicioso que arrepia todos os pelos de meu corpo.
E some.
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Entre o passado e o agora
RomanceEmmily Figueiredo leva uma vida perfeita ao lado de seu noivo Conrado Vasconcelos, após sofrer um trauma que a derrubou por um longo tempo. Em uma madrugada, misteriosamente, Emmily perde sua memória. Mesmo sem reconhecer o próprio noivo, Conrado...