O caminhante andava a passos largos, pela estrada margeada de arbustos verde-escuros. Era jovem, com o corpo forte de um home viril e saudável. Ia de mãos livres, os braços balançando ao ritmo da caminhada, o cabelo encaracolado umedecido pelo esforço e so pés manchados pela terra que entrava nas sandálias. Sua túnica estava molhada de suor, e as pernas nuas e musculosas brilhavam com a transpiração abundante. Respirava de modo compassado e, a cada inspiração, sentia nas entranhas o cheiro adocicado de maçã e de pera que impregnava o lugar. O viajante desviou-se da trilha e colheu uma fruta. Comeu-a com prazer. Passou a mão pelo queixo, limpando um fio de caldo.
Era um homem do campo e sempre gostara de caminhar no final da primavera, quando a relva ainda estava salpicada de flores silvestres. Em breve, o verão queimaria todas aquelas lindas cores e devoraria os goivos, as madressilvas, os ciclamens e as campainhas. Só os bravos pinheiros resistiam ao calor abrasador. Também os homens sofriam quando o Carro do Sol se aproximava por demais da Terra e a calcinava sem piedade. Mesmo naqueles dias que antecediam a grande canícula era precisa ter cautela e evitar olhar diretamente para a carruagem dourada que refulgia no céu. Quem ousava encarar aquele carro transbordante de luz era castigado pelo deus que o conduzia, porque os raios cor de ouro que dela se desprendiam eram sagrados e feitos somente para serem admirados por olhos divinos. O mortal que se atrevia a olhá-los fixamente era punido com a escuridão da cegueira. Havia muitas histórias que contavam a respeito da terrível punição infligida por Hélios. A divindade que conduzia o carro flamejante não admitia que humanos observassem a andadura de seus quatro imponentes cavalos - Fogo, Luz, Chama e Brilho. Por isso, o homem que caminhava pela estrada mantinha os olhos baixos. Ele não ousava desacatar a vontade divina e aceitava as excentricidades dos deuses sem discussão.
Naquele momento, o viajante estava feliz, pois sua jornada se aproximava do final, e ele logo reveria a família. Pensava na mulher e no filho que o esperavam a poucos dias de marcha. O Olimpo o tratava bem: ele possuía um rebanho de cabras e semeava trigo e cevada que resultavam em boas colheitas. Uma quarta parte do leite, do queijo e dos grãos era para o consumo diário de sua família; do restante, Cimene, sua mulher, armazenava um tanto para enfrentar a escassez dos meses do inverno, e a sobra era vendida na feira de uma vila próxima. Ele voltava justamente de uma viagem para negociar os seus produtos, e o tilintar das moedas, na bolsa de couro presa à cintura, era o merecido prêmio de todo o seu esforço.
Examinando as sombras no chão, Hípias se deu conta de que o dia já ia alto e recriminou-se por não ter ainda rendido homenagem aos deuses ou sequer lhes agradecido pelo privilégio de continuar vivo e saudável.
Preocupado com o desastroso esquecimento, ele parou e, voltando-se para o lado onde se erguia o imponente monte Olimpo, levantou os braços um gesto de adoração e suplicou à sua divindade protetora:
- Oh! Majestosa Afrodite, deusa da beleza e do amor, vele por este humilde e mísero mortal chamado Hípias. Eu a venero e admiro, incenso o seu altar e recito os cânticos que lhe dão prazer. Proteja-me dos prodigiosos perigos que, porventura, assombrem este caminho e interceda, por mim, junto ao magnífico Zeus. Em agradecimento, sacrificarei uma lebre em sua honra e queimarei, para de júbilo, muitas ervas perfumadas.
Hípias rezava, olhando com fervor na direção do monte sagrado em cujo topo, envolto em nuvens, habitavam os grandes deuses. Depois, esperou ansioso por um sinal que indicasse o atendimento da sua prece. Uma centelha faiscou no céu ao longe, e ele sossegou. Afrodite respondera. Satisfeito, o pastor reiniciou a caminhada em paz, despreocupado, certo de contar com a proteção divina. Aqueles eram tempos arriscados, e viver exigia cuidados especiais. O homem era por demais frágil para prescindir do auxílio olímpico, e a sua sobrevivência requeria a complacência dos deuses.
Hípias sabia muito bem que eles eram prepotentes, cruéis e vingativos; divindades caprichosas e cheias de astúcia que se imiscuíam na vida dos humanos, amando-os ou odiando-os com feroz intensidade. Destruíam-nos, às vezes, por simples diversão. Súbito, um pensamento inquietante cruzou sua mente: o Olimpo era um lugar de muitos prazeres, e Afrodite podeia estar se entretendo com algo melhor do que simplesmente vigiar um mísero mortal; isso podia ser fatal para ele. Apesar de não duvidar da bela divindade, o pastor parou e esquadrinhou ao redor, à procura de qualquer estranheza que pudesse significar perigo. Dezenas de histórias falavam de deuses metamorfoseados em humildes criaturas, somente para enganar os humanos e comprovar a sua fidelidade. "E mesmo se as divindades por ali não estivessem", pensou Hípias, "era de bom alvitre ficar alerta para a aproximação de algum herói em busca de feitos e bravuras, pois os protegidos dos deuses eram capazes de descontroles assombrosos e de ações insensatas". Que a majestosa olímpica de sua devoção não permitisse que ele ficasse frente a frente com uma daquelas instáveis criaturas! Ele tremeu ao lembrar-se de que Héracles, o mais extraordinário de todos os heróis da Hélade, sucumbira a um acesso de fúria e matara sua mulher e seus filhos. Nenhum ser humano podia enfrentar qualquer daqueles apadrinhados do Olimpo.
Depois de olhar em todas as direções e constatar que nenhum deus ou herói vinha ao seu encontro, Hípias farejou o ar, inspirando fundo para sentir se, misturando ao vento, havia o odor infecto tão característico dos monstros helênicos. Abominações comedoras de carne humana, eles irradiavam um cheiro nauseabundo e inconfundível e podiam ser detectados mesmo a grande distância. Aparentados com os deuses, eles eram invulneráveis aos humanos. Somente heróis conseguiam matá-los em memoráveis confrontos e, até que esses encontros se dessem, as monstruosidades continuariam espalhando terror e morte, no cumprimento de sua sina macabra. Hípias tratou de nada deixar ao acaso e, encontrando uma gruta e uma depressão coberta de água estagnada, farejou-se também. Tranquilizou-se! Não havia monstros à espreita. Naquele dia, pelo menos, ele estava livre das aberrações que invadiam os seus sonhos e perturbavam as suas vigílias. Despreocupado, ele continuou seu caminho.
Naquelas colinas, o olhar dos viajantes não alcançava muito longe. O horizonte ficava sempre bem perto, cume da elevação mais próxima, e o que havia por trás desse ponto era um mistério. Quem quer que lá estivesse não seria pressentido e surgiria sem aviso. Por isso, Hípias foi surpreendido pelo homem que lhe apareceu de repente.
- Alto! Quem é você? - gritou ele de uma distância que achou segura.
- Sou Orfeu, o filho do rei da Trácia!
- Você não me parece um guerreiro! - Hípias estava desconfiado. - Príncipes sempre são guerreiros!
- Não este! Eu sou poeta e músico.
Hípias avaliou o recém-chegado. O desconhecido não se vestia como um filho de rei. Estava amarrotado e sujo. Valia ter cuidado, pois ele bem podia ser um engodo dos deuses para provocá-lo. Os olímpicos eram dissimulados, e qualquer um deles poderia estar ali disfarçado, apenas para testá-lo. As divindidas adoravam criar conflitos, por simples prazer.
- Não tenha medo! - insistiu o outro. - Eu sou realmente um príncipe. Olhe bem pra mim!
O pastor o encarou, ainda sem estar convencido. Examinou-o dos pés à cabeça e viu o que não vira antes: ao contrário da sua, a túnica do desconhecido era feita de um linho belamente trançado e parecia ser macia e leve. Talvez o homem falasse a verdade, porque só nos palácios havia fiandeiras e tecelãs com habilidade para limpar e desembaraçar as fibras do caule do linheiro de modo tão uniforme e trançá-las naquele belo padrão. Os tecidos que vestiam os homens comuns não tinham tal qualidade: eram encaroçados e ásperos, e suas fibras, cardadas, fiadas e tecidas pelas mulheres simples dos povoados. O resultado desse mister em nada se parecia com o pano da túnica de Orfeu. Hípias resolveu acreditar e confiar.
Continua....
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Entre Deuses e Monstros
DiversosEste livro retoma o velho tema, sempre novo, costurando, com uma narrativa aparentemente casual e despretensiosa, alguns dos mais belos mitos gregos.