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   Orfeu não conseguia ver o barqueiro, apesar de sua voz soar de muito perto. A criatura estava escondida pelo vapor que subia do rio.

- Aproxime-se, Caronte! Como posso pagar-lhe se não o vejo?

- Aqui estou, desgraçado!

A quina de um barco preto encostou silenciosamente na margem. Nele, estava o ser mais repugnante que Orfeu já vira: um homem de cheiro infecto, desgrenhado e sórdido. Estaria vivo ou morto? Apesar de muito perturbado pelo aspecto do barqueiro de Hades, Orfeu pensava num meio de barganhar sua ida para o outro lado, porém suas maquinações foram interrompidas pelo grito que saiu da garganta de Caronte. Um brado de espanto e de cólera.

- Você está vivo!

Antes que o barqueiro chamasse o Cão do Inferno para expulsá-lo, Orfeu enfrentou a situação corajosamente.

- Sim, eu estou vivo!

Caronte tremia de fúria.

- Que ousadia! Por acaso você é um herói? Eles são os únicos que têm permissão de visitar este lugar enquanto ainda estão vivos.

Orfeu achou que a melhor tática seria confundir Caronte.

- Sou e não sou! Meu pai é o rei da Trácia, e eu sou um protegido de Apolo. Leve-me para a outra margem, que preciso seguir adiante.

- Filhos de rei não têm qualquer privilégio por aqui – zombou o outro. – Não posso atravessá-lo. Meu barco só transporta almas.

- Faça uma pequena exceção! Um vivente apenas! Quem iria notar ?

- Impossível! Tenho ordens expressas de Hades, o deus dos mortos. Somente aqueles que abandonaram a vida podem entrar em seus domínios.

Orfeu teve uma ideia.

- Eu lhe menti, barqueiro! Estou só metade vivo, o que havia de melhor em mim morreu; minha alegria, meu canto, minha inspiração. Eu falo, ando e respiro como um homem vivo, mas isto nada significa. Sou tão desgraçado quanto a mais miserável e desamparada das almas. O mundo Superior não tem mais sentido diante do meu desconsolo. O que é viver, barqueiro ? Eu já esqueci!

Caronte estava confuso.

- Você é o primeiro que me implora transporte. Todos os que aqui vêm choram e se lamentam com medo de atravessar. Muitos tentam fugir.

- Pois, então? Insistiu o apaixonado.

- Está bem! Concordo! De qualquer maneira, a sua metade que ainda está viva não sobreviverá muito tempo neste lugar de sombras. Entre no barco!

A travessia foi demorada, não tanto pela largura do rio, mas porque o barqueiro remava sem pressa. Quando Orfeu reclamou, ele respondeu:

- Os homens precisam de tempo para perceber a importância desta viagem. Não há motivo para a impaciência, já que a eternidade o está aguardando na outra margem.

- Eu sei, eu sei! Mesmo assim reme mais rápido – implorou Orfeu. – Não tenho um minuto a perder.

Caronte parou o barco e soltou uma gargalhada de gelar o sangue.

- Desça, Orfeu! Você chegou ao Inferno!

Entre Deuses e MonstrosOnde histórias criam vida. Descubra agora