A fenda que estava à vista era muito estreita, e Orfeu foi obrigado a alarga-la com as mãos para poder passar seu corpo. A terra, cheia de raízes e pedras, machucou-lhe os dedos deixando-os em carne viva. O sangue escorria das feridas, mas ele não se importou. A intuição dizia-lhe que prosseguisse. Afinal, depois de muito esforço, conseguiu uma abertura grande o bastante para poder passar. Antes de entrar, fez fogo e ascendeu um archote. Cuidando para não apaga-lo, ele se esgueirou rumo ao desconhecido. Não sentia medo, apenas confiança. Jamais cogitou que aquele lugar, abafado e úmido, pudesse significar o seu fim. Só a lembrança de Eurídice lhe ocupava o pensamento. Não vislumbrava pesadelos, mergulhava em sonhos. Caminhou resoluto por, talvez, uns duzentos passos, até que o tortuoso túnel se bifurcasse em caminhos que seguiam em direções opostas. Orfeu escolheu o mais soturno, certo de que a senda para o Inferno havia de ser lúgubre. Rapidamente, o túnel se estreitou. Seus braços praticamente roçavam as paredes de rocha espinhenta, com reentrâncias escuras, onde tenebrosos seres poderiam estar a espreita-lo. O calor se tornava insuportável, aumentando à medida que o túnel descia, sinalizando que ele não estava muito longe das forjas de Hefesto, o deus ferreiro, marido de Afrodite, que trabalhava perto do Hades. Aquela quentura enraivecida só podia vir da lava incandescente com que ele moldava os raios e as armas dos deuses. O coração bateu-lhe forte ao compreender que estava mesmo nas entranhas da Mãe Terra. O mundo dos homens ficara para trás. Logo, uma estranha e tênue claridade brotou do chão, iluminando o caminho restante. Sem qualquer aviso, o túnel abriu-se, formando uma imensa abóbora de cujo teto se penduravam pedaços de rocha moldadas como figuras macabras. Era um lugar que incutia terror. Ali existia uma força telúrica que atravessava as fibras do seu corpo e se entranhava em seus ossos. Não fosse pela saudade de Eurídice, ele tremeria.
Concentrando-se na lembrança de sua mulher, Orfeu olhou em volta. Tudo ao seu redor era sinistro e quieto. Nenhum sopro, nenhum som. A luminescência que subia do solo projetava, nas paredes, sombras informes que se adensavam escondendo segredos. Segredos que pareciam se materializar em mãos prontas para prendê-lo. Seriam as garras dos enviados de Hades para leva-lo à sua presença? Ou eram apenas dedos nascidos da sua própria imaginação? "Eurídice! Eurídice!", suplicou ele baixinho. A invocação da mulher amada dissolveu as abominações, trazendo paz. Serenado, Orfeu percorreu a caverna. Não havia morcegos, lacraias ou escorpiões. Nenhuma vida, além da sua, pulsava naquele antro. O local era morto, tétrico, vazio... Aquele "nada" significava que ele havia chegado ao fim da tortuosa busca e estava a um passo do reino de Hades. Apalpou a esmo, certo de achar, a qualquer momento, o portal do Inferno. De repente, se viu envolvido por uma miasma incomum, sentiu-se sufocado por fluidos pesados e insuportáveis e banhado por emanações ardidas. Comovido, percebeu que conseguira o seu intento. Sua perseverança fora recompensada: ele se achava no limiar do Mundo Subterrâneo. Finalmente, Eurídice estava ao seu alcance. Agradeceu a Zeus, prometendo-lhe uma hecatombe quando retornasse ao mundo dos vivos.
Durante o que lhe pareceu uma eternidade, Orfeu caminhou por extensões cada vez mais tenebrosas, até chegar a um rio de águas negras que ferviam, abrindo-se em bolhas inflamadas. Um vapor pegajoso pairava pouco acima da superfície escura, num efeito espectral.
- Pare! – gritou uma voz raivosa. – Quem é você, alma desventurada?
O príncipe não respondeu. Queria, primeiro, saber quem o chamava.
- Responda, infeliz! Não contrarie Caronte, o barqueiro do Inferno. Precisará dos meus serviços para atravessar este maldito rio.
- Eu sou Orfeu!
- Orfeu!... – resmungou o outro, mal-humorado. – Há quanto tempo você deixou o mundo dos vivos?
- Não sei bem!.. – mentiu o poeta. – Estou muito confuso.
- Você se acostumará à sua nova condição! – O barqueiro riu escarninho. – Trouxe o óbolo?
- O quê?
- O óbolo, mísera sombra! A moeda com a qual pagará a viagem para o outro lado deste rio. Sem ela, você ficará sofrendo aí mesmo, respirando eternamente essa podridão. Meu barco é a única maneira de entrar na Terra dos Mortos. Você não tem escolha, alma! Pague-me ou não o transportarei!

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Entre Deuses e Monstros
DiversosEste livro retoma o velho tema, sempre novo, costurando, com uma narrativa aparentemente casual e despretensiosa, alguns dos mais belos mitos gregos.