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  Para aquele mundo nas entranhas do solo, também chamado de Inferno, iam todos os mortos: os bons e os maus, independentemente dos atos que haviam praticado em vida. Somente depois eram decididos a sorte de cada um e o local que ocupariam na Terra das Sombras. Os que haviam ofendido os deuses padeceriam para sempre numa região de dor e sofrimento. Os crentes e os adoradores, os compassivos, os íntegros, os obedientes às leis do Olimpo e os autores de grandes feitos levariam uma existência prazerosa num campo bucólico. O destino de cada alma era decidido por três juízes, três mortos imparciais que, na Terra, haviam vivido de modo irrepreensível. Todos os julgamentos eram presididos por Hades, o austero deus infernal que raramente saía de seu reino. Pouquíssimas vezes ele foi visto, quer na Terra, quer no Olimpo, e, quando isso acontecia, era sempre em seu carro puxado por dois cavalos negros e sinistros. Os vivos o temiam; os mortos o achavam justo.

Na entrada do Inferno, as almas daqueles que as Moiras haviam escolhido para morrer encontravam, primeiro, um rio de fogo chamado Aqueronte. A travessia dessas águas ferventes só podia ser realizada no barco de Caronte, um taciturno barqueiro que só transportava os que o recompensavam pelo seu trabalho. Se o morto tivesse perdido a moeda que a família lhe dera, Caronte o ignorava, e a pobre alma teria que ficar na margem de chegada, eternamente sem esperança de poder alcançar uma vida melhor do outro lado do rio. O remador do Inferno era inflexível e cumpria fielmente as regras impostas por Hades, dando especial atenção àquela que não permitia que os vivos entrassem no Reino das Sombras.

O Mundo Inferior era uma região sinistra que sempre amedrontava os recém-chegados. As chamas que queimavam no Aqueronte eram invisíveis, e o rio tinha águas escuras e paradas. Caronte remava através delas sem fazer qualquer ruído, e o pesado silêncio só era cortado pelos lúgubres latidos de Cérbero, o cão de três cabeças que guardava o reino do soturno irmão de Zeus. O monstruoso animal ficava na margem oposta àquela da chegada, impedindo, com sua figura assustadora, que as almas desembarcadas tentassem retornar ao mundo que haviam sido obrigadas a deixar. Sua ferocidade intimidava. Seus olhos raivosos e fosforescentes amedrontavam de tal maneira que os mortos recalcitrantes – os ainda revoltados com a nova situação – logo desistiam de fugir e, abatidos, seguiam em frente ao encontro do desconhecido.

Quando os passos de Héracles estrondaram por aquelas paragens subterrâneas, os mortos ficaram ainda mais assustados.

Depois da passagem do desmedido herói, Hípias sentou-se à beira do caminho para se recompor do susto causado pelo colosso. Pensou em Orfeu, o infeliz príncipe quer perseguia um projeto impossível. O Mundo Inferior era interditado aos vivos, e isso não era segredo. O grande mistério era saber, exatamente, o que acontecia naquele lugar de sombras. Este era o terrível enigma sobre o qual os mortais só podiam especular, já que ninguém dali voltara para contar a respeito. Os heróis, que o tinham visitado com permissão dos deuses, estavam presos a juramentos e nada comentavam sobre o conhecimento usando a imaginação e formando ideias próprias. De uma coisa, contudo, todos tinham certeza: quatro caminhos levavam aos domínios da Hades. Por razões óbvias, as entradas dessas passagens eram camufladas, e nenhum vivente jamais as encontrara. Orfeu não tinha a mínima chance de achar uma delas. E, entretanto, estava confiante. Com certeza possuía informações seguras sobre a localização de, pelo menos, um dos portais. Quem o estaria ajudando? Seguramente Afrodite, pois só a deusa do amor pensaria em proteger um apaixonado.

Hípias estava errado. Nenhuma divindade auxiliava Orfeu. Ele agia por instinto, guiado apenas pela força de sua paixão, desconhecendo que, muito perto dali, na exata direção que decidira seguir, havia uma soturna caverna e, nela, uma das portas que levava ao Reino dos Mortos. 



Continua...

Entre Deuses e MonstrosOnde histórias criam vida. Descubra agora