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  A preocupação com Orfeu fez Hípias esquecer-se de Héracles e, convencido de que Afrodite se interessava pelo príncipe, resolveu reforçar a ajuda divina, invocando a deusa. Rapidamente, ele acendeu um pequeno fogo e queimou um ramo de murta. Quando a fumaça perfumada se evolou, ele implorou:

- Bela e poderosa divindade, que o seu perfume predileto a envolva e predisponha em favor de Orfeu, o príncipe da Trácia. Atingido por uma flecha de seu filho Eros, ele está perdidamente apaixonado e não aceita a morte de sua mulher. Quer trazê-la novamente para o mundo dos vivos e esta disposto a desafiar o grande Hades. Não deixe cair, sobre esse infeliz mortal, a cólera do Senhor do Inferno. Oh, Governante do Amor, que manipula as sendas da paixão, interceda pelo homem que tanto ama!

Soprou um vento incomum. Significa alguma coisa? Estaria Afrodite dando a sua resposta? Sem dúvida!... A brisa passava suave indicando a boa vontade da deusa.

Se Hípias não fosse um mortal e pudesse ver o que acontecia no Olimpo naquele momento, sua preocupação com Orfeu seria ainda maior, pois ficaria certo de que sua súplica não seria atendida. Os deuses estavam entretidos em mais uma discussão, e, quando isso ocorria, tudo podia acontecer, até mesmo uma completa indiferença em ralação às aflições humanas. Os olhos de Afrodite estavam voltados para uma outra direção, e seu olfato não sentira o cheiro da murta. Mas Hípias não fazia a menor ideia do que se passava naquela montanha inacessível aos homens, mágica na sua essência e assustadora nos seus segredos.

O imponente monte que arranhava a abóbada do céu com seus altos picos vestia-se de bordos, giestas, samambaias e urzes. Todos os que tentavam escalá-la, na vã tentativa de desvendar os mistérios do Mundo Superior, tinham um fim horrível, ora soterrados por avalanches, ora arrancados de suas encostas pelas rajadas de ar que redemoinhavam ao seu redor, ora simplesmente transformados nas rochas, arvores e grutas espalhadas pelas suas vertentes. Hípias sabia apenas que, em seu topo eternamente encoberto por nuvem e neblina, havia um belíssimo palácio de mármore e vento, inundado de eterna luz, onde habitavam doze seres imortais que reinavam sobre todas as coisas da natureza, sobre os homens, sobre os infortúnios e sobre os prazeres. Decidiam destinos, escolhiam castigos, concediam a paz e declaravam a guerra. Criavam catástrofes para punir e alegras para recompensar. Caprichosas e volúveis, as divindades do Olimpo variavam constantemente de humor, indo da benevolência à impiedade num átimo de tempo. Elas sabiam e viam tudo, e ninguém conseguia esganá-las impunemente. Nesse panteão seleto, Zeus era a força suprema, o todo-poderoso deus dos deuses, o imponente e astucioso árbitro final das disputas daquela corte. Extremamente viril, amava – com igual ardor – ninfas e deusas, mulheres da Terra e criaturas do fundo do mar. Volúvel, suas paixões pouco duravam, e a deidade que perdia os seus carinhos odiava a rival por toda a eternidade. Hera, sua irmã e esposa, em suas crises de ciúmes, já expulsara do Olimpo uma infinidade de deusas menores. Em suas ligações, Zeus gerara o belo Apolo, divindade de muitos atributos e facetas, criatura ora serena, ora violenta, capaz de curar e de destruir; Hermes, o deus mensageiro que era o senhor do comercio, dos ladrões e dos rebanhos; Pã, o deus selvagem, metade homem, metade bode; Artemisa, a deusa virgem que percorria as planícies da Terra no seu carro de prata; Ares, o irascível Senhor da Guerra que percorria os campos de batalha incitando, com seu grito aterrador, ao combate e à destruição; Atena, a divindade guerreira dos olhos glaucos. Zeus também gerou Pólux, Perseu e Héracles, os heróis triunfais.

Viver no Olimpo era agradável, um dia a dia de prazeres e diversões, com banquetes de ambrosia e néctar. Quando não se entretinham com músicas e danças, os deuses se empenhavam em lutas de poder para conquistar um maior número de adoradores entre os mortais. Na insistência de aumentar sua importância e adquirir mais templos e santuários na Terra, os olímpicos não se impunham limites: enganavam, mentiam e trapaceavam. Ao incensar um deles, o ser humano desagradava a todos os outros, arriscando-se, assim, a terríveis vinganças e castigos por parte dos desprezados. Não era sábio afrontar qualquer um deles.

No momento mesmo em que Hípias suplicava por Orfeu, Afrodite se entregava a uma guerra pessoal contra Eos, a linda encarregada de abrir os portões do firmamento para dar passagem ao Carro do Sol que espantava a escuridão produzida por Nix. O encanto esfuziante de Eos dos Dedos Rosados ofuscava o brilho das constelações e irritava a deusa da beleza, que, por despeito, arquitetou um plano para fazê-la sofrer e chorar: matar seu filho numa luta cruel entre os helenos e os troianos que iria acontecer no futuro. E as lágrimas dessa dor pingariam dos tão admirados dedos rosa e seriam tantas que umedeceriam tudo que tocassem. Lágrimas de orvalho a borrifarem a Terra.

Por isso, Afrodite não ouviu o pedido de Hípias e não se dispôs a ajudar o príncipe poeta.


Entre Deuses e MonstrosOnde histórias criam vida. Descubra agora