- Este celerado não se contenta somente em mutilar os seus hóspedes. Não!... Ele conhece outra forma de se distrair. Se os incautos viajantes são menores do que a cama, o miserável os amarra numa roda e os estica até que seus braços e pernas se soltem do corpo e eles morram gritando de dor. Não há tortura pior! Agora, vou pôr um fim nesses crimes hediondos e mandar Procuste direto para o Tártaro.
Hípias pensou que o herói fosse liquidar rapidamente o bandido, mas não: Teseu moeu o homenzarrão de pancada até que ele ficasse tão esmigalhado quanto a monstruosidade que Héracles arrastara e, depois, o esganou bem devagar, saboreando sua morte, comprazendo-se com a vingança. O pastor quis reclamar, mas não encontrou palavras. Ouviu-se um som de laringe triturada: os olhos do facínora saltaram das órbitas e sua língua pendeu arroxeada. Ele amoleceu. Teseu soltou-o, e ele caiu feito um trapo. Hípias estava nauseado, sentindo uma vontade louca de fugir. Andar em companhia de heróis era extremamente perigoso.
Teseu passou por cima do corpo sem vida, olhou-o com indiferença e, sorrindo satisfeito, exclamou:
- Vamos contemplar as estrelas!
No dia seguinte, Hípias acordou resolvido a se livrar do filho do rei de Atenas. Fingindo grande naturalidade, perguntou-lhe candidamente:
- Para que lado você vai?
- Vou para o litoral, na direção da morada do vento Austro, onde embarcarei para a ilha de Creta. Lá existe um monstro que jurei exterminar. É um flagelo que causa muita consternação ao meu pai. Vou liquidá-lo; vou transformá-lo em pó; vou...
Hípias pensou que tal façanha não seria difícil. Em voz alta disse:
- Que pena que você vai para o litoral!... Eu vou exatamente na direção oposta... – e apontou para o lado da morada do vento Bóreas.
- Sinto muito!... Sua companhia me agrada, pastor, e, portanto, vou acompanhá-lo até a próxima colina para conversar mais um pouco.
Hípias suspirou bastante aborrecido e pensou: " Se não posso me livrar dele, é melhor distraí-lo para que não tenha ideias destrutivas e cometa qualquer desatino." Por isso, perguntou:
- Qual é o monstro que você planeja matar?
- O Minotauro! Uma criatura infame, metade homem, metade touro. Ninguém sabe qual é exatamente a sua aparência, mas acredita-se que seja um homem de tamanho descomunal, com cabeça de touro e chifres gigantescos. Uma coisa é certa: ele só se alimenta de carne humana. Vive num bizarro e intrincado lugar que é uma obra-prima de complicação. Chama-se Labirinto e ocupa vários acres; tem centenas e centenas de corredores de paredes altíssimas. Eles ficam a céu aberto e se entrecruzam, dão voltas, seguem adiante e retornam, numa atrapalhação sem fim. A finalidade do Labirinto é criar o maior emaranhamento possível para confundir o monstro e impedir que ele encontre a única porta que existe e saia dali. Bem no centro do emaranhado há um bosque compacto onde está o estábulo que lhe serve de morada. O homem-touro corre furiosamente por todos os corredores procurando achar a tal porta e escapar para devorar os habitantes da ilha, mas até hoje ainda não conseguiu encontra-la.
Hípias quis saber como um monstro prisioneiro num lugar sem saída conseguia encontrar vítimas para devorar.
- Os sacrificados lhe são enviados por Minos, o soberano de Creta, que os manda buscar em diferentes reinos da Hélade. O rei tem verdadeiro pavor do homem-touro e treme só em pensar que o monstro possa, um dia, achar a saída e correr enlouquecido pelas ruas da cidade, comendo quem encontrar pela frente. Talvez até ele próprio.
- E quem são as vítimas do monstro? Prisioneiros condenados?
- Não! O Minotauro exige que as pessoas imoladas sejam jovens e bonitas. Este ano, os sacrificados são atenienses.
- Atenienses? – perguntou Hípias, surpreso.
- É!... Meu pai e Minos fizeram um acordo que estabelece a obrigação de enviarmos, a cada nove anos, quatorze jovens para serem sacrificados ao flagelo de Creta. Sete rapazes e sete moças. É uma longa história!... Um dia lhe contarei.
A surpresa de Hípias cedeu lugar ao horror. Teseu percebeu a perturbação do outro e tentou explicar:
- O rei de Creta é uma boa pessoa e tem pena dos que são oferecidos à gula e à fome do Minotauro, mas não vê outra solução. É preciso pacificá-lo. Sabe como é: matar uns poucos para salvar outros muitos. Meu pai, o rei Egeu, fica muito triste com tudo isso, mas quer honrar o compromisso. Um rei não volta atrás com sua palavra.
- Mesmo numa situação tão triste quanto essa?

VOCÊ ESTÁ LENDO
Entre Deuses e Monstros
RandomEste livro retoma o velho tema, sempre novo, costurando, com uma narrativa aparentemente casual e despretensiosa, alguns dos mais belos mitos gregos.