O fogo devorava o varrão, e a fumaça que subia impregnada com o cheiro de carne tostada certamente alcançaria o Olimpo, levando o odor daquele sacrifício até o olfato da deusa, que se deixaria inundar de prazer. Hípias atirou-se ao solo para que a energia da Terra o revigorasse e o deixasse pronto para seguir o conselho de sua protetora. Tinha plena certeza de que seria atendido. Não se enganou: a resposta chegou na forma de uma ideia.
- Vamos a Delfos consultar o oráculo de Apolo. Ele nos dirá o que fazer.
Cimene não estava segura do sucesso daquela viagem. Sabia que a Grande Sacerdotisa dava preferência a questões importantes e duvidou que respondesse a uma pergunta feita por um pastor de cabras. Talvez seus auxiliares nem os deixassem entrar no templo.
- Quem nos garante que a Pítia falará no dia em que lá estivermos? Você sabe que ela só repete os conselhos que Apolo sussurra em seus ouvidos uma única vez por ano.
Apavorado com a descrença da mulher, Hípias a fez calar-se;
- Não blasfeme! Não duvide do conselho de Afrodite! Cuidado para que ela não se irrite com a sua falta de fé e se volte contra a nossa casa. Se nos ordenou ir a Delfos é porque a Pitonisa nos falará.
Cimene tremeu ante a possibilidade de atrair a cólera da deusa e se penitenciou por não ter confiado. Se ela duvidara da viagem a Delfos, muito se devera aos perigos de uma tão longa caminhada por lugares desconhecidos, mas, com a proteção da divindade dourada, o chão por onde andariam estaria coberto de flores e nada de mau lhes aconteceria.
Partiram no amanhecer seguinte, assim que os dedos róseos de Eos colorissem a trilha que Hélios ia seguir. O pensamento de que a górgona e a Medeia pudessem ter escolhido aqueles sítios tranquilos como refúgio obrigava-os a não perderem um minuto sequer. Tudo resolvido, os quatro esquartejam o varrão e o comeram pela metade, guardando o resto para a viagem.
Na hora da partida, Laio recebeu recomendações precisas: não se aproximar do bosque; não falar com estranhos; manter o rebanho sempre próximo da casa; e, sobretudo, não se esquecer de invocar sua divindade protetora.
Delfos ficava longe, e teriam muito que caminhar, precisariam empreender árduas jornadas, e a carne que sobrara não duraria muito, por isso Cimene preparou provisões de bolos e de mel.
Hípias colocou algumas moedas em sua bolsa de couro.
Agenor apanhou um amuleto do qual não se separava.
A família estava pronta.
- Adeus, Laio! – gritou Agenor, acenando da estrada para o amigo que ficava.
AQUELES FORAM DIAS ANSIOSOS. Os três peregrinos davam asas à imaginação tentando adivinhar o que as Moiras lhes reservavam. Estavam temerosos, sem saber o que aconteceria quando chegassem ao templo. Qual o melhor lugar para esperar a cerimônia? Como agir caso fossem agraciados com a honra de se dirigir ao Senhor do Arco Dourado, o deus cujo lábios não mentiam? Que atitude tomar se as palavras tão esperadas indicassem uma tragédia? Era impossível achar respostas para tantas dúvidas. Eles não conheciam quem já tivesse consultado o oráculo de Apolo, mas sabiam de pessoas que haviam buscado orientação com os outros deuses, em outros templos, e que ficaram para sempre amedrontadas com as trovejantes vozes das divindades. Apesar de tudo, eles estavam decididos a enfrentar fosse o que fosse: a segurança da família pairava acima de qualquer medo. Fariam tudo o que a Pítia ordenasse.
ANDARAM POR QUASE UMA SEMANA, descansando muito pouco. Finalmente divisaram o monte Parnaso e, ao pé dele, uma planície flanqueada por duas construções baixas. Haviam chegado: estavam no santuário de Apolo. O cansaço sumiu de suas pernas, e eles correram.
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Entre Deuses e Monstros
RandomEste livro retoma o velho tema, sempre novo, costurando, com uma narrativa aparentemente casual e despretensiosa, alguns dos mais belos mitos gregos.