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   - Fale baixo, Orfeu! – aconselhou o pastor. – Afrodite é ciumenta dos seus encantos. Não existe no Olimpo alguém mais linda.

- Talvez não no Olimpo!... Com certeza, não no Olimpo! Mas, na Terra...

"A conversa está ficando perigosa", pensou Hípias. Orfeu não media as suas palavras, e Afrodite jamais perdoava uma ofensa. Aquela opinião podia ter sérias consequências. Ele orou para que a deusa não tivesse ouvido o comentário impertinente e desafiador.

- Depois – continuou o príncipe -, apanhei a guirlanda que ela tecera e a coloquei em seus cabelos. Eurídice sorriu outra vez e disse: "Este amor será para sempre!" Feliz como nunca, eu a levei para o meu palácio. Ao meu acompanhar, ela deixou para trás um machado extremamente afiado que estivera a seu lado.

O pastor não se conteve:

- Por que Eurídice tinha um machado? É uma arma perigosa.

- Porque ela é uma dríade, e as dríades são as ninfas guardiãs das árvores. Elas as protegem de qualquer mal. O carvalho no qual a minha amada se recostara era de sua responsabilidade, e aquele machado servia para punir os que ousassem machucá-lo.

Cauteloso, Hípias se desencostou do tronco onde se apoiava, pois não queria ter problemas com a dríade daquela faia.

- E por que razão Eurídice o abandonou? Será que as ninfas não sabem amar para sempre? – perguntou ele, meio sem jeito.

- Claro que sabem! Não foi esse o motivo. A verdade é mil vezes mais cruel, porque inesperada e dramática. Nós dois vivíamos uma vida venturosa e partilhada. Às vezes, ela demonstrava desejo de rever os seus antigos afetos e pedia-me que a levasse ao bosque. Porém, num certo dia de verão, ela foi sozinha, prometendo regressar antes que a tarde caísse. Despedi-me e vi-a partir, sem adivinhar que ela nunca mais voltaria – a voz do príncipe tremeu ao reviver aquele momento doloroso. – Meu amor não retornou à hora prometida. A noite chegou sem que houvesse qualquer notícia dela. O rei, meu pai, enviou cinquenta arqueiros à sua procura. Eram soldados experientes que esquadrilharam cada palmo do bosque à luz dos seus archotes. Não houve gruta, branco ou ravina que não tivesse sido esmiuçado. È meia-noite, o desânimo era geral. Todos já pensávamos numa tragédia. Meu sofrimento era infinito e nem adianta tentar descrevê-lo. Os homens gritavam uns para os outros: "Encontraram alguma coisa?" As respostas eram sempre as mesmas: "Não! Pro enquanto não!" Ninguém mais acalentava esperanças. Vi que os soldados me olhavam com profunda tristeza. Foi de manhã que finalmente a encontramos. Ela parecia adormecida, tão plena era a sua beleza. Seu corpo jovem estava sobre um amontoado de folhas secas, e sua cabeça pendia sobre o ombro esquerdo. "Eurídice!", gritei. Ela não acordou, nem jamais acordaria. O comandante da guarda, tomado de grande emoção, mostrou-me dois minúsculos sinais em seu tornozelo: eram as marcas deixadas pelas finas presas de uma serpente. Minha esposa tinha partido, levada por um mortífero veneno.

Hípias não sabia o que dizer. Compreendeu o desespero de Orfeu, mas não entendeu sua procura por Eurídice. Ela estava morta, perdida para sempre no Inferno, presa no reino de Hades por toda a eternidade. Por que tanto emprenho em descobrir o caminha para a Terra dos Mortos, se as almas que lá estavam jamais voltavam ao mundo dos vivos? O príncipe estava louco em pensar que podia resgatá-la, isso se conseguisse encontrar uma das entradas secretas que levam ao Reino das Sombras. Hípias tentou adverti-lo daquela impossibilidade.

- Ouça-me, eu simpatizo com a sua dor e compartilho do seu tormento, pois também tenho uma esposa a quem amo. Mas sei que é totalmente impossível recuperar quem está sob a guarda de Hades. Conforme-se com a sorte que Láquesis colocou no fio da sua vida. Desista de ir ao Inferno!

- Não! Irei ao Reino dos Mortos e trarei Eurídice para o mundo dos vivos.

- Isso é uma loucura! – gritou Hípias horrorizado. – Nenhum homem conseguiu entrar no Mundo Subterrâneo. Somente alguns heróis, com permissão de Zeus, visitaram aquele abismo sombrio. É um local proibido aos vivos! É a morada dos mortos! Abandone a ideia, Orfeu! Por mais que lhe doa, você está vivo e não pode, ainda, encontrar-se com Eurídice.

- Tem que haver um jeito! Eu preciso tentar. De qualquer maneira, pastor, sem ela, eu já estou morto.

Hípias condoeu-se daquele amor desesperado.

- Se é assim, que os deuses o ajudem!

Orfeu preparou-se para prosseguir caminho.

- Adeus, pastor, nunca o esquecerei!

Entre Deuses e MonstrosOnde histórias criam vida. Descubra agora