O Encontro com Teseu

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  Nem bem terminara a invocação à Afrodite e a queima do ultimo ramo de murta, Hípias notou que o Carro do Sol, aproximando-se da borda oeste do céu, em breve desapareceria. Hélios logo iria banhar seus quatro cavalos nas águas subterrâneas do rio Oceano e, depois, descansaria nas profundezas da Terra para ressurgir, no dia seguinte, no outro lado da abóbora que cobre o mundo, e iniciar mais um passeio pelo céu. Enquanto ele não retornasse, a velha divindade Nix, que nascera do Caos, tudo cobriria com o seu manto escuro, trazendo, aos homens, inquietações e sobressaltos só amenizados com o clarão de um bom fogo. As perversidades noturnas detestavam a luminosidade das fogueiras e preferiam permanecer nas trevas, instigando os medos nascidos do terror cósmico. Nestes, bruxas, górgonas e grifos guinchavam pela escuridão, prontos a atacar os desavisados com suas garras afiadas. Com Nix, Nêmesis, Queres, Cloto, Láquesis e Átropos. Um viajante precisava ser prudente e esperar pelo retorno de Hélios, escondido em alguma lapa ou ravina.

Hípias calculou ter ainda uma hora de luz para procurar um local seguro e preparar uma fogueira. Então, ouviu que o chamavam:

- Ei, pastor, venha até aqui! Preciso de sua ajuda!

A voz era resoluta e áspera. De quem seria? Hípias olhou em volta procurando o homem. Descobriu-o deitado, aproveitando a brisa. Estranhos requeriam cautela, por isso se aproximou desconfiado e alerta. Percebeu que o outro não era uma pessoa comum. Havia nele alguma coisa de diferente... Um certo ar de altivez... Um brilho estranho no olhar.

- O que posso fazer por você? – perguntou cauteloso, apreciando os músculos do forasteiro.

- Tire este maldito espinho do meu dedo!

Não era um pedido. Era uma ordem. Hípias obedeceu.

- Deixe ver!... Pronto! – disse, puxando a farpa que penetrara no anular do desconhecido. A mão do homem era forte como uma rocha e fria feito o inverno. Parecia perfeita para segurar lanças e espadas.

Livre do estorvo, o homem disse:

- Eu sou Teseu, filho de Egeu, o rei de Atenas! – explicou, sem sequer agradecer. – Quem é você?

- Meu nome é Hípias e sou um pastor, como você bem adivinhou. – Enquanto respondia, Hípias avaliou aquele príncipe e concluiu que ele não era como o outro. Orfeu, apesar de toda a sua imensa tristeza, tinha um olhar cálido e gentil. O filho do rei de Atenas dava uma sensação de desconforto, com suas pupilas extremamente brilhantes, nas quais refulgia um clarão ameaçador. Orfeu procurava reencontrar a doçura de um amor perdido, enquanto Teseu parecia buscar alguma coisa feroz, alguma coisa que estava muito além da compreensão de um simples pastor. Hípias sentiu-se estudado pelos olhos fulgurantes do recém-chegado.

- Você é apenas um criador de cabras – disse o ateniense. – Um homem sem glórias que habita estas colinas!

Hípias sentiu-se agastado pelo tom de menosprezo. O comentário do príncipe era agressivo, principalmente por ser dirigido a quem acabara de lhe prestar um favor. Teseu não parecia dar valor aos que se encarregavam de coisas corriqueiras. Afinal de contas, a vida não se resume a grandes feitos. Será que príncipes de Atenas não bebiam leite como qualquer pessoa? Fosse como fosse, era melhor não retrucar, pois o filho de Egeu parecia ser um sujeito de maus bofes. Quem sabe ele não seria algo mais do que apenas o filho de um rei? Os olhos desatinados, o corpo extraordinariamente atlético e o claro desprezo pelo ser humano indicavam que aquela criatura pertencia a uma outra categoria de mortais. Seria possível que um mero pastor da Tessália estivesse dialogando com um daqueles perigos ambulantes que viviam à cata de monstros e gigantes? Hípias sentiu um frio nas entranhas e tratou de assegurar-se:

- Por acaso você é um herói?

- Sou! Já ouviu falar das minhas façanhas?

- Não! – desculpou-se Hípias. – Praticamente não abandono o meu rebanho. Quando muito, vou às feiras. Nada sei do que acontece longe da minha casa – justificou-se, procurando não irritar o herói.

Teseu ficou desgostoso.

- Eu me arrisco a cada dia e você nada sabe a meu respeito!... Acabei de atirar, penhasco abaixo, um irascível gigante que se recusava a deixar-me passar por sua montanha. Já enfrentei e liquidei mil monstros, e, ainda assim, você não me conhece. É incrível!... – Ele estava cada vez mais irritado. – Ser um herói é um privilégio. Nós nascemos sob a proteção do Olimpo e temos compromissos com a posteridade. Todo o meu tempo é dedicado a cumprir esse destino honroso. Minha sina é ser grande; é aniquilar aberrações e acumular honrarias.

   - Triste fado!

- Como, pastor? O que foi que você disse?

- Nada! Um pobre mortal como eu não entende de feitos heroicos e de magnificências. Apenas lido com as miudezas da vida, pequenas coisas que, pensando bem, podem chegar a ser grandes.

O príncipe, que não gostava de reflexões nem de paradoxos, interrompeu o pastor:

- Para onde você está indo?

- Para casa. Não é muito longe daqui. Mas, no momento estou somente procurando um abrigo onde passar a noite. Acho melhor nos despedirmos. Não desejo atrapalhá-lo com a minha presença. Imagino que um homem comum deve estorvar um herói.

- Às vezes sim, às vezes não! Entretanto, gostaria que você ficasse e aproveitasse o privilegio da minha companhia. Lembre-se de que heróis nem sempre estão disponíveis. Somos muito ocupados. Vamos permanecer juntos durante a visita de Nix.

"Oh, Zeus!", pensou Hípias. "Por que você o colocou no meu caminho? Heróis são criaturas difíceis e instáveis. São irritadiços. Destemperados. Violentos. Vaidosos. Como poderei enfrentar a sua cólera se, por acaso, vier a desagradá-lo? Eu sou um simples ser humano! Ajude-me nesta hora difícil e tire-o do meu caminho!"

O Olimpo não se manifestou, e Hípias compreendeu que estava à mercê das Moiras. Cada homem tinha o seu quinhão de felicidade e de desgraça, e nada havia que ele pudesse fazer. Era seu destino acompanhar Teseu. Os deles não iriam interferir, e os humanos que os pressionavam se arrependiam amargamente.

O herói e o pastor caminharam por quase meia hora. O primeiro falava sobre os seus combates e as suas façanhas, e o segundo apenas escutava, sem coragem de interromper as sagradas recordações. Esgotadas as proezas, Hípias disse, à cata de assunto:

- Vi o filho de Zeus passando por estas paragens. Por acaso você também não o encontrou? As passadas dele estrondavam como os raios de seu pai, e ele arrastava o que me pareceu ser um monstro desmantelado.

- Héracles? Não, não o vi! Eu estava muito cansado por causa de uma luta contra um gigante da montanha. Ouvi os estrépitos, mas pensei que fosse o Senhor do Olimpo atirando seus raios para assustar os mortais. Fale-me daquilo que o herói arrastava.

Hípias descreveu os destroços em detalhes. Quando mencionou as oito cabeças de serpente, Teseu se agitou.

- Se a criatura esmigalhada tinha tantas cabeças, só pode ser a Hidra, o monstro dos pântanos de Lerna – concluiu. – Na verdade, a abominação possuía nove cabeças. Você não deve ter contado direito.

- O terror estava todo arrebentado – desculpou-se o pastor. – Só consegui contar oito línguas bifurcadas. E vi, também, um par de olhos que relampejavam irados no meio do esmigalhamento.

- Não o culpo por não ter reparado direito! Deve ter sido uma visão aterradora para um pastor. A Hidra era uma das piores aberrações da Hélade. Eu mesmo pensei em trucida-la, mas vejo que o filho de Zeus se antecipou. Deve ter sido mais uma das tarefas que o Senhor do Olimpo lhe impôs como castigo por ter matado a sua mulher e os seus filhos.

Hípias horrorizou-se ao saber que um herói podia cometer um ato tão cruel, e os seus pensamentos apareceram em seu rosto, pois Teseu logo explicou:

- Foi culpa de Hera, que o enlouqueceu; roubou-lhe o juízo, por uns momentos, para que ele fizesse exatamente o que fez. Ela queria que Zeus o trancasse no Tártaro, mas, em vez disso, o Senhor do Olimpo deu-lhe terríveis incumbências como castigo e só o perdoará se ele for bem-sucedido. 

Entre Deuses e MonstrosOnde histórias criam vida. Descubra agora