O barco de Teseu ruma para Creta.
De pé na proa do barco, rumando para o Minotauro, Teseu sonhava com as glórias que aquela aventura lhe traria. Ceifador de monstros, catador de perigos, andarilho, combatente, o filho do rei de Atenas tinha um medo corrosivo e inconfessável: ser varrido da memória dos homens e ter seu nome sepultado na poeira do tempo.
"Teseu?", "Quem é?", "Quem foi?".
"Ah, mil vezes a morte!", pensava ele.
Os deuses eram compassivos e lhe haviam concedido uma força extraordinária que deslocava rochas e catapulta gigantes para além das colinas. Sendo um adorador de Ares – a divindade das batalhas -, ele era perfeito nos combates e jamais recuara ante os perigos. Expunha-se nos confrontos, aparentando a cega confiança dos predestinados, mas levava escondido no sangue aquele medo perturbador. Seguia sempre pelejando, para que o seu nome não se apegasse da lembrança dos homens, e fazia dessas lutas curativos para a estranha doença que o consumia. Mas sentia que trucidar os gigantes que infestavam a Hélade não era o bastante para merecer a glória eterna. Nem mesmo a morte de Procuste lhe proporcionaria tal ventura. Faltava a proeza hercúlea que o ombreasse ao filho de Zeus; faltava o feito imorredouro, a façanha inesquecível para o imortalizar na Terra. E, quando um oráculo mencionara o monstro do Labirinto, ele compreendera que matar o homem-touro seria a proeza que tanto buscava. Seria o ápice de sua vida. O que ele já fizera não era suficiente. O auge viria com o Minotauro. Enfrentá-lo e derrotá-lo terminaria com a terrível moléstia que lhe roía a alma. Seria também um bálsamo para o seu velho pai, sempre amargurado pelo tributo que se via obrigado a pagar ao soberano de Creta. Teseu sorriu, pensando no triunfo que o transformaria no grande herói de Atenas. Quando as Moiras cortassem o fio da sua vida, ele descansaria nos belos jardins dos Campos Elíseos, citado e reverenciado. Que viesse logo o arrepiante e maravilhoso confronto!
O herói sondou o mar Mediterrâneo procurando a ilha do rei Minos. Ela era grande e bela e custava imaginar que possuía um tal flagelo. Pior ainda era pensar que o soberano protegia o terrível homem-touro.
NUMA MANHÃ, BEM CEDO, Creta surgiu ao longe. O príncipe estremeceu de prazer, pensando que, dentro do Labirinto, o monstro de apetite brutal urrava como de hábito, sem adivinhar que o seu fim estava próximo. A abominação que Posídon engendrara, a criatura que se deleitava com sangue – como as divindades com néctar – e que rasgava corpos com um prazer bestial, morreria por suas mãos. Antecipando o prazer da matança, o herói agradeceu a Zeus e a Atena. Depois, olhou para a fúnebre vela negra alçada no mastro de seu navio, indicando a trágica finalidade daquela viagem. Era como uma mortalha balançando ao vento, um sudário sem cadáver. Não podendo se opor às exigências de Minos, Egeu ordenara que o barco transportando os que iam morrer sempre navegasse com a vela enlutada, em sinal de respeito pelos sacrificados. Mas, dessa vez, haveria um regresso diferente, uma volta triunfal sem mortos a lamentar, e o pano negro seria substituído por um outro de cor branca, uma bandeira jubilosa, sinal do sucesso da expedição, sinal da morte do monstro. Prometera a Egeu, e assim faria. O resultado do combate épico seria conhecido com a embarcação ainda ao largo, para alegria do povo de Atenas e alívio do velho rei. Quando finalmente ela atracasse, toda a cidade estaria em festa.
A trirreme varava as águas, impulsionada por um vento quente que inflava a lúgubre vela redonda. Ia escalando as pequenas ondas no ângulo certo para ganhar mais velocidade e chegar mais rápido. Seu casco, de proa curva, abria caminho suavemente, sem castigar os navegantes. Seria uma linda viagem, não fosse pela finalidade trágica que amargurava o coração de todos a bordo. Os rudes marinheiros cumpriam suas tarefas de cenho franzido, sem cantarolar as costumeiras canções. Trabalhavam cabisbaixos, condoídos dos jovens passageiros que transportavam para o sacrifício e que seguiam calados e melancólicos, conformados com o fim cruel que os aguardava. Não lhes ocorria sequer pensar numa possibilidade de fuga, pois sabiam que os desígnios do Olimpo tinham que ser cumpridos. As Moiras teciam com a concordância dos deuses, e estes só interferiam em casos muito especiais. A vida de quatorze atenienses não era importante, e castigado. Por isso, os condenados não opunham resistência, não choravam nem gritavam e se deixavam levar, mergulhados numa espécie de tristeza indefinida.
Uma menina, linda na sua adolescência, aproximou-se de Teseu.
- Conte-me sobre o Minotauro! Quero morrer sabendo quem é o meu algoz. Preciso conhecer as razões do meu sacrifício.
Surpreso com o pedido, pois não tinha o hábito de procurar motivos, o herói contou tudo o que sabia:
- Há muito tempo, para impressionar o povo de Creta e se fazer rei, um homem chamado Minos afirmou que os deuses lhe concederiam todas as graças e favores que ele exigisse. Pondo-o à prova, a população sugeriu que pedisse a Posídon fazer nascer das águas do mar um touro. Acompanhado por todos os habitantes da ilha, os crédulos e os incrédulos, Minos marchou para a praia e lá invocou e adulou a grande divindade. O deus do mar se agradou do que ouviu e, para assombro de alguns e regozijo de outros, ordenou às ondas que se encrespassem, avançassem e recuassem enfurecidas. Depois fez com que o turbilhão de espuma se rasgasse, formando um profundo abismo do qual surgiu um magnífico touro branco. Imenso, fogoso, belíssimo! A criatura criada por Posídon imediatamente nadou para a terra e galopou por entre a multidão embevecida. Depois, parou diante de Minos, que a afagou emocionado, decidido a guardá-la para si próprio, em vez de sacrificá-lo ao deus como havia anteriormente prometido. Maravilhado com aquele feito extraordinário, o povo de Creta o aclamou rei. Porém, com os deuses olímpicos não se brinca. Enfurecido com a deslealdade de Minos, o rancoroso Senhor dos Mares convocou seus gigantescos e violentos filhos para o ajudarem a arquitetar uma vingança contra o traiçoeiro mortal. Precisava ser qualquer coisa soberba que desencorajasse os homens de tentarem, outra vez, enganá-lo. Acorreram Polifermo, Crisaor, Pégaso e Tritão. Foi este último quem sugeriu o castigo sublime que gerou o Minotauro: fazer a rainha de Minos se apaixonar perdidamente pelo touro branco e conceber, dele, um filho que se converteria na vergonha e na desgraça do rei desleal. Fazer nascer uma criatura que não seria nem homem, nem animal, mas uma insólita combinação dos dois: um ser com corpo humano e cabeça de touro, uma anomalia repulsiva e aterradora, que espalharia o terror no reino de Creta.
A menina ouvia, calada, o relato daquela terrível história, e Teseu, que não precisava de incentivos para continuar falando, desenrolou o resto que sabia:
- Cumpriu-se a desforra divina. O filho da rainha logo mostrou sua perversidade, alimentando-se unicamente de carne humana. Em questão de dias, já era um adulto com imensos chifres pontiagudos. Os apavorados cretenses, ironicamente, chamaram-no de Minotauro, significado o filho-touro e de Minos. O rei morre de medo do homem-touro e não ousa contrariá-lo. Além disso, teme atrair, novamente, a ira de Posídon se não ceder aos desejos bestiais do monstro, já que suspeita ser ele um protegido do deus das águas. Por isso, nem sequer pensa em exterminá-lo. Entretanto, para resguardar seu reino e manter o homem-touro distante de seus súditos, ele mandou construir um local conhecido como Labirinto, lugar cheio de câmaras e de corredores, e lá colocou a aberração. O Labirinto é – a bem dizer – uma prisão, pois quem nele entra é incapaz de encontrar a saída. Só Dédalo, o homem que o construiu, sabe o segredo do emaranhado. Aprisionado naquela rede de galerias, o Minotauro não devora a população de Creta, mas a atormenta com os seus urros apavorantes. Os cretenses vivem em constante sobressalto, e Minos, para livrá-los dos brados arrepiantes do homem-touro, aplaca a sua fúria dando-lhe o que ele mais gosta: carne humana. As vítimas da fome do Minotauro são trazidas de outras terras, e Atenas é uma delas. É por isso que você vai morrer.
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Entre Deuses e Monstros
AcakEste livro retoma o velho tema, sempre novo, costurando, com uma narrativa aparentemente casual e despretensiosa, alguns dos mais belos mitos gregos.