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   - Quem é você? Quem lugar é este? – perguntou.

A sombra estacou surpresa ao ouvir outro som que não o da ventania.

- Aqui ninguém mais é. Ademais, eu já bebi a água do rio do Esquecimento – respondeu ela melancólica – e não sei mais quem fui. Agora sou apenas uma alma sem nome. – E apontando em volta, disse pesarosa: - Tudo o que tenho é isto: a planície dos Narcisos.

- Narcisos?

- Sim! Os lírios negros que brotam das gretas, nosso único bem.

Orfeu compadeceu-se daquele abandono, mas não podia perder tempo com sentimentalismo. Precisava encontrar Eurídice.

- O que há para além desta planície?

A alma encarou detidamente o príncipe e perguntou perturbada:

- Você não é um de nós?...

- Não! Eu estou apenas de passagem, procurando por minha mulher.

- Ela é um de nós?...

- Por enquanto! Somente por enquanto! Vou leva-la de volta para o mundo dos vivos.

- Impossível! – gritou a alma horrorizada. – Nenhum morto abandona o Inferno. Aqui é a nossa eternidade. Mortos são mortos! Nossos corpos já se desfizeram e não temos mais lugar na Terra. Pertencemos a Hades para todo o sempre.

- Veremos! – disse Orfeu determinado. – Quem são as almas que vagam por esta imensidão?

- As dos adoradores que, como eu, desagradaram os deuses de alguma forma. Perdemo-nos por pequenas desatenções e malfeitos.

- Então, ela não está aqui! – Orfeu estava aliviado. – Ela é pura e meiga como uma criança. E gentil também. É incapaz de qualquer indelicadeza. Diga-me, alma, há no Inferno outros lugares, além de planície?

- Parece que há prados cortados por rios transparentes e bosques com árvores carregadas de frutos. Dizem que lá há muitos, muitos pássaros voando e cantando. Eu nunca estive nessas paragens bem-aventuradas – lamentou-se a alma.

A ideia de que o Inferno podia também ser bonito encheu Orfeu de alegria, e ele gritou:

- Eurídice deve estar lá!

- Talvez!... Você pode até encontra-la, mas jamais conseguirá leva-la para o mundo dos vivos. A morte é definitiva! Não há como voltar atrás!

- Isso é o que vamos ver! Nosso amor é maior do que a morte, e tenho certeza de que conseguirei tirá-la do Hades.

Vendo a ânsia de Orfeu, o vulto afirmou:

- Não se apresse! Nada no Inferno é feito com urgência. Os mortos podem esperar. Não seja precipitado! Procure um caminho seguro que leve ao maravilhoso lugar que mencionei. Parece que se chama Campos Elíseos. Se conseguir chegar lá, não entre afoitamente. Lembre-se de que você está vivo e que, apesar de toda a beleza, lá também é a casa dos mortos. Não incorra na ira de Hades desafiando as suas regras ou ele o prenderá no Tártaro para sempre.

- Tártaro? Onde fica isso?

A alma riu um riso tristonho.

- No fim do Inferno. É o local mais apavorante no reino de Hades, o mais brutal e o mais aterrador.

É a morada de todas as penas e de todos os sofrimentos. O local dos gemidos e das dores. Do fogo e do chicote. Comparada ao Tártaro, esta planície é um lugar de sonho.

- E que almas habitam essa abominação? O que elas fizeram para merecer tal castigo?

- Elas são as almas infames dos homens que ousaram desafiar o Olimpo. Lá estão, também, as que deram morte ao próprio corpo ou ao de alguém de sua família. São as almas de todos os que perpetraram ações abjetas e se alegraram com elas. Quem entra no Tártaro jamais sai, pois a fornalha de Hades é cercada por um espesso muro trípilice, cuja única entrada é um intransponível portão de bronze fabricado por Hefesto. Um portão que só se abre para receber as malditas. Dizem que os lindos prados dos Campos Elíseos que confinam com a muralha do Tártaro são desertos de almas, pois os bem-aventurados não se aproximam do muro, temerosos de ouvir os gritos e lamentos das encarceradas. Ouça-me: não desafie o Senhor dos Mortos.

Entre Deuses e MonstrosOnde histórias criam vida. Descubra agora