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    Uma casa apareceu no fundo do vale, e Hípias – que não desejava conhecer as outras incumbências – aproveitou-se dela para cortar o assunto:

- Olhe lá embaixo! É uma casa! Talvez seja um abrigo para viajantes. Vamos verificar!

A pequena habitação era realmente uma hospedaria. À porta estava um homem extraordinariamente grande e descabelado, porém bastante afável e risonho, que logo lhes ofereceu pousada.

- Esta estalagem é minha, e ficarei muito contente se pernoitarem comigo – disse ele. – Há semanas ninguém aparece por aqui. O lugar é isolado, e me sinto muito solitário. Fiquem, que o vinho é honesto, e o queijo, curado ao ponto!

Toda a arenga do estalajadeiro era dispensável, pois Hípias e Teseu nem por um instante pensaram em recusar. O homem esbanjava hospitalidade, e eles estavam famintos. Entraram. No canto à esquerda havia um braseiro com luz suficiente para espantar as abominações da escuridão.

- Minha casa é simples, mas acolhedora – garantiu o grandalhão .

- Chega de conversa, albergueiro! Nós vamos ficar! – exclamou Teseu, irritado.

O homem abriu um sorriso de boas-vindas.

- Acomodem-se onde quiserem!

Os hóspedes olharam em torno e constataram que a estalagem era realmente bastante simples. Não havia muito onde sentar: que pudessem ver, apenas dois bancos capengas e um empilhado de peles de cabra. Teseu decidiu-se pelas peles macias, e Hípias sentou-se no banco menos torto. Num canto afastado, um pequeno brasileiro iluminava fracamente o local. Depois de habituados ao lusco-fusco, os hóspedes viram duas prateleiras, uma mesa imunda, uma esteira rasgada e uma cama com um estrado feito de couro trançado. Se o proprietário possuía outros pertences, as sombras escondiam.

- Desculpem o tamanho da cama. Não é muito comprida.

- Isso não importa! - respondeu Hípias.

- Resolveram quem ficará com ela – acrescentou o estalajadeiro.

- Eu! – gritou Teseu.

Hípias e o homem dormiram no chão sobre as malcheirosas peles de cabra.

- Descansem enquanto preparo a ceia – disse o hospedeiro.

De uma prateleira, o dono da casa apanhou três canecas de cerâmica grosseira e três pratos igualmente mal-acabados; da outra, pegou uma ânfora de vinho e uma bacia com pães e queijo.

   - Vamos ao vinho! – convidou. – Na minha estalagem é preciso toma-lo puro. Não gosto de misturá-lo com água, como é de costume.

Muito pródigo, o homem não se cansava de encher as canecas. A ânfora esvaziou e ele trouxe outra.

   - Bebam e mastiguem! – insistia ele alegre.

Como para servir de exemplo, comia gulosamente e derramava garganta abaixo grandes goles de vinho. Sua sofreguidão era tanta que muito da bebida escorria de seus lábios e sumia na barba emaranhada. De repente, ele explodiu numa gargalhada e disse com voz pastosa:

- A ânfora está vazia! Parece que bebemos todo o vinho que havia na prateleira. Amanhã. Se quiserem, providenciarei mais. Agora vamos dormir. Boa noite! – Assim dizendo, o estalajadeiro atirou-se no leito de peles e sugeriu que Hípias fizesse o mesmo. – Dionísio nos dará muitos sonhos agradáveis. Ele protege os que gostam de vinho – murmurou antes de adormecer.

Logo, o ressonar dos três cortou o silêncio da noite.

Passados alguns minutos, o estalajadeiro abriu sorrateiramente os olhos e examinou os hóspedes para ver se dormiam. Sorriu de modo pérfido ao constatar que os visitantes se haviam dado de tal forma a Hipno que mais pareciam dormir o sono eterno de Tânatos.

- Ótimo – sussurrou ele - , fica tudo mais fácil!

Grunhindo de satisfação, o homem esfregou as mãos sinalizando uma alegria incontida. Seu rosto ganhou uma expressão pérfida e cruel. O bom sujeito desapareceu dando lugar a uma criatura traiçoeira. Pé ante pé, ele se aproximou da cama onde Teseu dormia e examinou as suas pernas, constatando que, dos joelhos para baixo, elas estavam para fora do estrado. Aquele era o hóspede mais alto que já pernoitara em sua estalagem. Que bom! Cuidando de não fazer qualquer ruído, foi buscar um machado que estava guardado num canto escuro. A pesada lâmina estava manchada de sangue coagulado. O homem parou ao lado da cama do herói e levantou a arma com disposição. Aquela seria a melhor amputação que já tivera a oportunidade de fazer. Teseu, que não estava absolutamente embriagado e apenas fingia dormir, pulou feito um cabrito da montanha e agarrou o bandido pelo pescoço.

- Fale, mísera víbora enganadora! Você oferece uma noite tranquila e logo intenta um crime!

- Hípias acordou com a gritaria e, esfregando os olhos, tentava entender o que se passava. Como um possesso, o filho do rei de Atenas sacudia o simpático estalajadeiro que gemia de dor e medo. O rosto do homem azulava com a falta de ar, enquanto o de Teseu avermelhava de raiva incontida. O pastor se perguntou se aquele herói não teria enlouquecido como o outro. Será que a matança de tantos monstros afetava o juízo desses nobres indivíduos?

Será que, depois de algum tempo, eles não mais distinguiam entre um leão de três cabeças e um inofensivo taberneiro?

- Vou mata-lo. Procuste! – vociferava o príncipe fora de si. Voltando-se para Hípias, gritou: - Este homem é um bandido famigerado que adora torturar os seus hóspedes. Reconheci-o porque Apolo me sussurrou a sua verdadeira identidade. Quando os viajantes que dormem aqui não cabem nesta cama bolorente, Procuste corta-lhes o pedaço das pernas que fica para fora do estrado. – O bonito rosto do herói estava tomado de ódio, e sua expressão era tão má quanto a do terrível assassino.

- Ele pretendia amputar-me logo abaixo dos joelhos – berrou Teseu.

O taberneiro esperneava tentando soltar-se das garras que continuavam a sacudi-lo. Hípias não cabia em si de tanta surpresa. Em toda a sua vida jamais estivera numa situação como aquela. O príncipe balançava o grandalhão de um lado para o outro como se estivesse a sacudir uma perna de cabrito. Quanto mais sacudia, mais enraivecido ficava.

Entre Deuses e MonstrosOnde histórias criam vida. Descubra agora